Ler o título não é ler o livroLer o livro não é entender o livro.Depois que cê entender o livro cê pode colar pra falar que cê não curtiu o título,Certo? 2tj46
Fazia sentido – Don L
Vivemos a era da descolonização de tudo – menos, é claro, das colônias. Gurus de ofícios variados vendem todo tipo de cacareco para jovens e adultos progressistas ansiosos por se verem livres da acusação moral, porque vazia, de ser um colonizado, ou pior, um colonizador. Resultado: Malcolm X, Frantz Fanon e Frida Kahlo, para citar apenas algumas vítimas desse comércio, reduzidos a produtos de uma etiqueta da desconstrução. Como relíquias católicas, surgem objetos e menções ornamentais de alguns desses bons selvagens, numa objetificação fetichizante que os fazem circular retalhados, desfigurados, a granel. Distribuídos aos pedaços, em cada ecobag trazem a promessa de proteger o comprador contra a acusação de “eurocêntrico” – agouro combatido por tais amuletos como se fosse mau-olhado.
O que há de descolonizante no comércio ornamental de relíquias dos mártires coloniais? A única relação social que podemos estabelecer com nossos heróis, sob a égide o capital, é o consumo? Certo, e o que faremos a respeito? Nosso horizonte deve ser o colecionismo de edições de luxo dos livros de Fanon, para decorar o fundo de nossas fotos e vídeos? O que mudamos com isso, além da renda dos vendilhões do templo? Creio que parte da banalização do que seja “decolonial”, “pós-colonial”, “anticolonial” a pelo desconhecimento do que é o colonial. Estiveram tão preocupados em estabelecer um nicho de mercado via prefixo que esqueceram do sufixo. E não há atalho: quem quer conhecer o colonizador precisa conhecer sua retórica de poder. Eles estão há séculos dizendo, com sinceridade variável, o que fazem e por quê. Precisamos apenas prestar atenção no lugar que o colonizado ocupa nos sonhos molhados do colonizador.
Não falo disso para subir em um pedestal moral, mas para compartilhar com vocês o meu processo. Eu estive incluso no mar de jovens amedrontados que só queria consumir os produtos corretos para que ninguém pensasse mal de mim. O que me mudou foi cursar, na graduação, a disciplina de Sociologia Brasileira. Nosso professor dedicou quase a totalidade do semestre à leitura das obras fundadoras da historiografia colonial brasileira. Ler esses livros, escritos por missionários jesuítas, reis e senhores de engenho, foi o que me fez entender que descolonização não é um nicho de consumo ou um clubinho de culpa branca, mas um compromisso ético-político que devemos a nossos anteados, contemporâneos e descendentes.
Nesse texto, vou tratar do que podemos fazer a respeito; pelo menos, do que funcionou comigo. Primeiro, “ler o título não é ler o livro”: aprender a língua do opressor; se você não sabe contra o quê e contra quem Césaire escreveu seu Discurso sobre o Colonialismo, fica mais fácil para os vendilhões te convencerem que “colonialismo” é o produto do concorrente. Depois, “ler o livro não é entender o livro”: compreender o que está sendo dito a partir da crítica do pensamento colonial. Aí então, com as armas da crítica afiadas, podemos colar pra falar que não curtimos o colonialismo. Certo? Então vamos lá.
1º Ler o título não é ler o livro 9n1o
Todo colonizado é um bilíngue cultural. O colonizador garante que assim seja porque precisa que a criadagem saiba ao menos responder ‘yes, sir’ às ordens dadas. Já que a deusa tecnologia não fala espanhol, como disse Galeano n’As Veias abertas da América Latina, parte de nossa mão de obra precisa estar habilitada à operação do maquinário teórico importado. Devemos ser disciplinados executores de certa razão instrumental: existir para operar as ferramentas do opressor de modo que o saber legítimo seja definido como tudo aquilo que demonstra nossa inferioridade ao Mestre. Todo resultado do uso de tais ferramentas trará como fato que somos burros, pobres, subdesenvolvidos, violentos porque falhamos em nosso dever de caminhar rumo à imitação do Cristo. Não daquele, mas de outro: do Homem Universal, da ordem burguesa, de seus valores. Da encarnação moral do Império.
As revoltas de libertação nacional que emanciparam da China à Argélia, do Vietnã ao Haiti, de Guiné-Bissau à África do Sul, são o resultado de um processo tal qual os livros de seus heróis em nossas estantes. Quem quer o fim quer os meios: por isso, não podemos separar a obra do caminho que a produziu. Não se pode entender a obra de Fanon, por exemplo, sem considerar que ele sobreviveu a anos de humilhações na boca da besta colonial sa. Lá onde o colonialismo produz seus apologetas, Fanon se tornou um mestre das ferramentas do pensamento do colonizador. Assim que por ele tomadas, as armas da crítica, tal como os canhões da frota de João Cândido, foram voltadas contra os mestres.
É preciso imaginar o aluno Frantz puto. A cada desaforo, a cada humilhação, a cada afirmação absolutamente racista de seus professores, colegas de classe e dos textos que lia. Mas ele seguiu. Ele preparou sua tese, Pele Negra, Máscaras Brancas, rejeitada pela Universidade que o formou e, por isso mesmo, aprovada com louvor pelos oprimidos. A vitória do Vietnã, liderado por Ho Chi Minh e Giap, a pelos achaques a que Ho foi submetido em seus anos estudando na Metrópole sa e em seu período trabalhando como garçom em navios de luxo. Não se entende Mao sem o século de humilhações da China; L’Ouverture sem a bárbara escravização sa no Haiti; Mandela sem o Apartheid; Amílcar Cabral, Mondlane, Machel e Agostinho Neto sem os séculos da sanguinária Metrópole portuguesa, que teve a audácia de conferir a si própria o título de mais branda de sua estirpe.
Assim como não se entende a obra sem a trajetória do autor para a realizar, não se liberta uma colônia sem a observação atenta dos colonizadores, dos mecanismos de produção e reprodução do sistema colonial. Assim fizeram nossos anticolonialistas: aprenderam como usar as armas do opressor, como subverter as tecnologias de morte e desumanização e se libertaram. Eles não pediram que seus algozes os assassinassem com melhores modos; eles construíram alianças, eles se armaram. Eles resistiram. E venceram.
Do jacobinismo negro ao marxismo posto em prática no terceiro mundo, não foi pedindo por favor que o anticolonialismo que descoloniza colônias venceu. Para vencer, porém, eles estudaram em profundidade o sistema colonial por dentro. Eduardo Mondlane leu Casa-grande & Senzala numa universidade portuguesa. Deve ter detestado; mas quem expressa mais despudoradamente que Freyre o orgulho que os colonos ainda sentem do “afetuoso” colonialismo português? O que Mondlane aprendeu ali o levou a fundar a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o movimento que libertou o país africano1. Por que não poderíamos fazer o mesmo e aprender com nossos opressores?
Ler o título não é ler o livro. Ser contra o colonialismo de forma vaga, como pedágio moral para ar certos espaços de consumo, só vai servir para você perder dinheiro. É preciso se dedicar a aprender sobre o colonizador. Eles mesmos, certos que estão de sua vitória, nos enchem de informações. As maiores verdades sobre a visão de mundo colonial estão expressas nos seus cânones despudoradamente. A questão é que, se você não souber de onde vem essas ideias, vai acabar pensando que um Bolsonaro qualquer as inventou2. A seguir, alguns exemplos da importância de ler tais livros e de compreendê-los de um ponto de vista anticolonial.
2º Ler o livro não é entender o livro 464811
Para proteger os nativos, em outras palavras, estes devem entregar suas terras e recursos aos colonizadores, e devem eles próprios fazer acordos através do Direito Internacional de forma que não entrem em guerra entre si; é para o benefício dos nativos que eles se rendam e observem os imperialistas que dividem o saque. Este é o ponto máximo do Direito Internacional imperialista, que se entoca no arcabouço conceitual das atuais leis internacionais, segundo o autor Vijay Prashad.
Este texto inteiro poderia ser uma nota de rodapé à obra de Edward Said, que elevou à maestria a arte de fazer o peixe morrer pela própria boca. Profundamente erudito, Said conhecia de cor o cânone colonial. Em Orientalismo, sua obra prima, mas também em Cultura e Imperialismo, o autor palestino puxou a capivara do colonialismo europeu no assim chamado “Oriente”. Ao expor como os profetas do colonialismo produziam narrativas legitimadoras deste, definindo-se como Ocidente em oposição aos orientais portadores de todos os defeitos do mundo, Said pôs em forma de teoria literária o caminho para os colonizados que quiserem escovar a história colonial a contrapelo. Seguindo a rota traçada por Said, creio que devemos dar corda para o colonizador ir se enforcando. Preste atenção no que eles dizem, tudo está lá. Dominada a língua terrível do colonizador, podemos reconhecer seus padrões, suas rimas ao longo da história dos oprimidos.
Tendemos a pensar, por conta da educação que recebemos, que o colonialismo é coisa do ado, que foi vencido há muito tempo por força de calendário. Todos sabem, afinal, que a história acabou em 1991 e, desde então, vivemos num pós-créditos do filme da vitória final do Império estadunidense. Apesar desse fato por todos conhecido, o colonialismo segue vivo. Basta abrir um jornal, e depararemo-nos com artigos saudando a coragem intrépida dos colonizadores israelenses, como se estivéssemos em 1500 e lêssemos a Folha de Lisboa congratular os feitos Cabralinos. Não sai na mídia burguesa, mas, para o terror dos derrotistas e dos apologetas do Fim da História, também o movimento anticolonial continua. Prova disso é a heroica resistência do povo palestino ao Apartheid colonial israelense, barbárie financiada pelos dólares da Metrópole ianque.
Eu estudo Palestina desde o mestrado. Nesse período, meus amigos me ouviram dizer várias vezes que quanto mais eu estudo Palestina, mais eu aprendo sobre o Brasil e vice-versa. Retorno àquela disciplina de Sociologia Brasileira que mencionei. Foi ali que me deparei pela primeira vem com a obra de Gândavo, missionário português que nos legou um Tratado da Terra do Brasil. Sobre os indígenas com que tivera contato no litoral brasileiro, disse:
Estes índios são de cor branca, e cabelo corredio; têm o rosto amassado, e algumas feições dele à maneira de chins [chineses]. Pela maior parte são bem dispostos, rijos e de boa estatura; gente muito esforçada, e que estima pouco morrer, temerária na guerra, e de muito pouca consideração: são mal agradecidos em grande maneira, e muito desumanos e cruéis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo. Vivem todos muito descansados sem terem outros pensamentos senão de comer, beber, e matar gente, e por isso engordam muito, mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a emagrecer (…) (Gandavo, p. 133)
Carregado na marca do plural – eles todos são assim – o texto já estabelece o mau caráter, barbaridade e amor ao sangue e aos prazeres da carne. Sim, Caio, eu sei que esse rapaz é racista. De que isso me serve? Repare nas acusações contra os colonizados: gente bárbara e violenta, que não sabe aceitar de bom grado o bem que os colonizadores lhes fazem ao lhes colonizar/civilizar. Esse é o exato argumento sionista, por exemplo, contra os árabes e palestinos que supostamente teriam recusado diversos acordos de “paz” a eles oferecidos. Os ecos da figura do terrorista, facilmente descritíveis como “muito desumanos e cruéis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo”, transbordam na propaganda sionista. Ah! E não podemos esquecer também que esses bárbaros só pensam em beber, comer, por isso engordam muito, tal qual Bolsonaro disse sobre os quilombolas outro dia – ocasião em que foi recebido e aplaudido no auditório da Hebraica, em São Paulo. Sigamos:
Esta [língua/gente] de que trato, que é geral pela costa, é muito branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medida (Gandavo, 2008, p.134).
Essa é minha citação favorita da obra de Gândavo, porque ela resume muito bem quem é o colonizado aos olhos do colonizador. O autor fala em fêmeas e machos, como animais; sua língua, incompleta, não fornece aos nativos a capacidade mental de conceber critérios de organização do mundo válidos. O pecado maior do colonizado é que ele não fala a minha língua. Perceba, no entanto, que, de acordo com a organização das raças entre os colonizadores eruditos daquele período, as gentes são classificadas pelas línguas que falam, sejam colonizados ou colonizadores. Eles não falam nossa língua, logo eles não são como nós. Só que, diferente dos ses, espanhóis, etc., eles não são um Outro, com F, L, e R próprios. Eles estão abaixo.
Eis o sumário da fórmula colonial do FLR: não é que eles não têm fé; eles não são capazes de elaborar um sistema de crenças digno do nome. Não é que eles não têm lei; é que eu não reconheço a validade de outra lei, nestas terras que estou colonizando, que não a minha. Não é que eles não têm rei; é que o modo de organização social deles deve ser exterminado para que os sobreviventes sejam transformados em súditos do meu Rei – retirando-os, assim, da natureza e incorporando-os à sociedade. Eles não são nem eu, nem outro, mas um terceiro excluído, relegado à condição de paisagem natural, de ser abjeto. Ouvi-los seria como ouvir as opiniões das árvores e das pedras.
Fanon nos avisou: “O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior”. Este é o cerne do sistema de organização do pensamento social sob o colonialismo. Pense em qualquer situação de violência colonial contemporânea: quando os palestinos foram sequer ouvidos se não o impusessem antes por meio da força? Quando as fomes coloniais da Irlanda e de Bengala, causada pelo colonialismo inglês, foram tratadas seriamente? Quando o genocídio alemão contra os Hereros e Namaquas, na Namíbia, ou a ser discutido? Quando a Bélgica devolveu os restos mortais de Patrice Lumumba, primeiro presidente eleito do Congo, por eles sequestrado, torturado, morto e derretido em ácido sulfúrico? O que seria das minorias étnicas da Espanha hoje, não fosse o programa espacial que lançou o primeiro astronauta espanhol ao espaço? Tudo ou pela derrota material dos colonizadores, não por metáforas.
Quando nos restringimos às metáforas, às histórias comoventes do colono “pobre”, “perseguido na Europa” que venceu na vida, caímos na armadilha de transformar colonos em heróis. Pior ainda, legitimamos um mundo em que a redenção de um pode ser conseguida sobre os escombros da vida do outro. Muitos autoproclamados “progressistas” usam como argumento a favor da reforma agrária no Brasil o suposto fato de que os Estados Unidos “fizeram a sua há muito tempo”. Colonizados que somos, claro, reduzimo-nos ao psitacismo e repetimos: “se eles podem, eu posso, se eles podem, eu posso!” Ocorre que eles não fizeram uma reforma agrária; eles fizeram um genocídio indígena e lotearam as terras desses povos entre colonos brancos – muitos dos quais o realizaram através de mão-de-obra escravizada.
Rudyard Kipling, em uma de suas obras, narrou a aventura de um homem como esses, que foi ao Oriente em busca de fortuna. “O homem que queria ser rei” narra as peripécias de um herói que busca superar sua condição precária na Metrópole migrando para um lugar onde poderá ser um Rei, tratado como Deus pelos nativos seus inferiores. Ambrósio Fernandes Brandão é um destes heróicos self-made colonizadores que povoam a história colonial de ontem e de hoje. O coitadinho, um cristão-novo perseguido pela Inquisição na Europa, veio ao Brasil e conquistou fortuna por aqui. Cristãos-novos no topo!
Este homem que queria ser rei ou para a história incensado como um case de sucesso da tolerante terra de oportunidades que era a América. Este homem que queria ser rei, e conseguiu, dedicou sua vida a escrever sobre as maravilhas do Brasil. Isso, claro, quando houvesse tempo livre. Pois a escrita não poderia atrapalhar o árduo serviço de Brandão I, rei de um engenho de açúcar no nordeste brasileiro. Vejamos os frutos de sua benemérita obra:
(…) tendo eu em minha casa uma mulatinha de pouca idade, que nela me nasceu, a quem queria muito por havê-la criado, um escravo meu, com ânimo diabólico, estimulado de a menina me descobrir um furto, que ele havia feito, lhe deu peçonha, de tal sorte que em muito breve espaço inchou toda uma cor denegrida (…)imaginei, com firme pressuposto, ser o acidente causado por peçonha, e que o autor de lha dar devia de ser o próprio escravo, que lhe havia dado, porque tinha entre os tais nome de feiticeiro e arbolário. Pelo que fiz lançar mão dele, afirmando-lhe não que não teria mais vida que en-quanto a menina gozava dela, porque sabia de certo haver-lhe ele dado peçonha, com lhe dizer mais, e ainda mostrar que o queria fazer, que o havia de ar por entre os eixos do engenho; portanto que procurasse com brevidade dar remédio ao mal que tinha feito (…) e dentro de um dia esteve sã como dantes. e eu estranhamente magoado de não poder conhecer a erva, porque nunca pude acabar com o escravo, nem por ameaças nem por dádivas que lhe prometi, que ma amostrasse: somente em um pequeno pedaço dela, que lhe tomei dentre as mãos, enxerguei que era uma erva cabeluda (Brandão, p.183-184).
O esclarecido déspota usineiro, louvado pela posteridade por seu espírito prático e conhecimento das ciências naturais e teológicas, não poderia permitir que uma pessoa escravizada lhe subtraísse a posse de outra, matando-a. Fez bom juízo e ameaçou o escravizado responsável, descoberto após razoável investigação baseada em rumores que davam conta daquele homem ser feiticeiro, de tortura caso ele não desfizesse a bruxaria e salvasse sua humana de estimação. Salva a propriedade real, nosso venerável herói lamentou apenas não ter conseguido tomar, além da liberdade e da força de trabalho daquele escravizado, seu conhecimento. Uma pena, não?
O último dos luminares de nossa história colonial que quero citar é Capistrano de Abreu, historiador cearense, republicano e autodidata. Contemporâneo de figuras execráveis como Gustavo Barroso, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, Capistrano se destacou como o autor menos racista da ementa daquele curso de Sociologia Brasileira (de Tomé de Souza a Gilberto Freyre, o tom só começa a mudar lá pelas tantas, quando chegamos em Sérgio Buarque de Hollanda). Nos Capítulos de História Colonial, Capistrano condensa e reinventa a historiografia brasileira, apresentando o ponto de vista de nossos colonizadores sobre o país de modo sagaz e objetivo.
Nada do que li dá a entender que Capistrano concorda com os vaticínios de suas fontes. Pelo contrário. Mesmo assim, é interessante que ele se refira aos “naturais” como sinônimo de indígena, ecoando a conjugação entre natureza e naturalidade, esperada de um leitor e amigo de José de Alencar. Ao falar sobre os tupinambás, Capistrano os apresenta como aliados dos ses e nêmesis dos tupis, este um grupo mais amistoso com os portugueses. Ele destaca o espanto dos portugueses com a violência dos tupinambás, descritos por suas fontes como violentos comedores de gente capazes de fazer horrores. Os colonizadores lusitanos não sabiam o que fazer com os tupinambás, pois eles não serviam nem para escravos, por sua insubmissão, nem para conversão. Cabendo na sociedade colonial apenas como escravizados ou convertidos, não havia lugar possível para eles; por isso, foram exterminados.
Os tupinambá, além de tudo, eram aliados da concorrente ocupação sa – o que nos faz considerar se eram mesmo tão hostis e sanguinários ou se eram apenas hostis e sanguinários contra os portugueses. Em dado momento, a coroa portuguesa repreende os colonos por sua letargia (não era essa uma característica indígena?) no combate aos ses; queriam saber apenas de “tomar as índias por mancebas”, nas palavras de Capistrano de Abreu. Em resposta, a Coroa enviou uma frota guarda-costas liderada por um senhor a quem Capistrano dedica um parágrafo inteiro a nos contar de sua reputação como pessoa excepcionalmente violenta, amante de torturas e execuções públicas (não eram assim os Tupinambá? Como pode um português a serviço da Coroa se rebaixar tanto?). Nestes contrapontos, o historiador vai nos apresentando, discretamente, às contradições entre o dito e o feito dos colonizadores.
Na leitura destes autores, notamos que a natureza é recurso a ser explorado, extraído do chão para o bolso dos colonizadores. Ela é coisa a ser tornada lucro; os colonizados e escravizados – estes comprados, aqueles parte da paisagem – são também coisas que não podem existir de outro modo. Para consolidar a colônia portuguesa, conclui a Metrópole, é preciso de gente ocupando aquele lugar. Decidem então enviar mil famílias para a França Antártica, atual Rio de Janeiro, após a derrota dos ses. Donde deduz-se que, seja lá o que acabara de ser morto ali, não era gente.
Consolidar uma colonização através da exportação de colonos para ocupar a terra roubada é uma tática colonial mais velha que andar para a frente. Fizeram no Brasil, em vários momentos; fizeram nos Estados Unidos, na Austrália; fizeram na Argélia, na África do Sul e no Egito. Mas o eventual leitor que desejar ser um colono pode ficar tranquilo que ainda há uma alternativa: Israel! Se você estiver disposto a revirar seus anteados atrás de alguma ascendência judia, ou mesmo se converter – só lembre de ser branco! – você pode ter a experiência completa de nossos anteados quinhentistas e atravessar o Atlântico para ir morar na terra dos outros. É realmente bem fácil; basta servir nas Forças Armadas por alguns anos e a terra é sua. Cuidado apenas para não se afeiçoar por nenhum “natural da terra”; diferente do Brasil colonial, lá é proibido misturar o puro sangue do colonizador.
Se você é daqueles que se pergunta o que faria se vivesse na época em que ocorriam esses absurdos, basta procurar o espelho mais próximo: você já o está fazendo. O colonialismo é hoje. Indígenas estão sendo assassinados no Brasil, com a conivência do Estado, hoje. O latifúndio colonial está escravizando pessoas hoje. O maior império do mundo está financiando o extermínio de um povo nativo e você fica sabendo entre propagandas de casas de apostas e o bloco de gols dos campeonatos estaduais. E o âncora está lá, defendendo a intrepidez do colonizador que queria ser rei. Isso não é sobre o ado, é sobre o presente. Gândavo, Brandão e outros vivem entre nós através de seus descendentes. Não de sangue, mas de classe; não faltam colonos de barriga cheia neste nosso mundo dito pós-colonial.
3º Colando pra falar que não curti o título: 175b3k
A ideia é pra quem fez números em cima de vocês, quente
Isso não é sobre de onde cê vem
É sobre onde cê quer chegar
E o que vai mudar pra quem vem
De onde cê vem quando tiver lá
Fazia Sentido – Don L
Iniciado o processo de leitura e entendimento do livro, das práticas, processos e retórica do poder, é hora de resistir. Mas como podemos nós, civis, pessoas comuns, resistir? Certa vez, um palestino de longa trajetória na luta me contou a respeito do primeiro evento relacionado à causa palestina do qual ele participara, ainda adolescente, nos anos 1980. Num auditório lotado de jovens palestinos, um importante membro da Federação Árabe-Palestina do Brasil (FEPAL) falava à nova geração sobre a necessidade de lutar pela libertação de seu povo – mesmo que da Diáspora. Ao ouvir de alguns dos presentes que eles até gostariam de ajudar, mas não tinham tempo, respondeu: “Quem tem tempo é vagabundo, à toa; quem não tem tempo e, mesmo assim, decide pela luta – esses são os que queremos”.
A história das revoluções e dos movimentos de libertação nacional nos mostra que não há momento confortável para lutar. Justamente porque não conseguimos mais respirar que devemos retirar a espada do opressor de nossos pescoços. Tal foi a razão que levou, ao longo dos séculos, pessoas de todas as origens comprometidas com a causa da Humanidade a servir à resistência da forma que lhes foi possível. Há exemplos notáveis de intelectuais, jornalistas e escritores que serviram à luta pela libertação através de seu trabalho, como Edawrd Said ou mesmo o historiador Ilan Pappé. Outros que se engajaram mais diretamente na resistência armada, como Ghassan Kanafani, abandonaram tudo o que tinham para tomar parte na luta armada e entregar suas vidas à Revolução. Independentemente do caminho escolhido, o que o ado nos pede é que atuemos hoje, aqui, agora, para além dos limites permitidos por aqueles ainda sentados sobre os ombros dos gigantes que pisotearam este mundo, legando-nos as ruínas em meio às quais vivemos hoje.
Eu li um livro de uma pesquisadora nascida e criada no Golã sírio ocupado, com cidadania israelense, judia. Foi a obra dela que me fez perceber que a diferença entre outras experiências coloniais e a que vemos hoje na Palestina Ocupada é apenas uma: a densidade histórica. Aqui começamos no século XV; já Israel começou no século XX. O cerne da questão segue o mesmo. Terra, exploração de recursos naturais, extermínio dos menos-humanos. Produção de maioria demográfica do colono: centralização do controle dos recursos; destruição dos meios de vida e resistência nativos. E tudo regado a doses cavalares de autocomiseração dos perpetradores. O sonho deles? Encher um museu com relíquias da população extinta e, com a paz de espírito advinda de ser beneficiário de um crime sem que ninguém mais exista para os lembrar da culpa do perpetrador, derrubar uma ou duas lágrimas. “Perdoai-nos, Pai! Não sabíamos o que fazíamos!”
Sabiam.
Eu quase consigo ouvir os psitacídeos através da tela do computador: “sim, mas se o Brasil e todas as nações civilizadas (sic) já fizeram isso, por que só Israel não pode, seu antissemita hipócrita? Logo na nossa vez inventaram que indígena é gente?”. Eles costumam flutuar, algo neuroticamente, entre o direito de terem sua vez no bonde do genocídio colonial e a afirmação de serem eles os verdadeiros indígenas. Não se decidem. Em todo caso, respondo à “indignação” que acomete as calopsitas sionistas quando denunciamos seus crimes. Não é que só vocês não podem cometer um genocídio colonial. É que ninguém pode. Ninguém jamais pôde. Sempre foi e continua sendo errado. Na Palestina, no Brasil, em qualquer lugar.
“Ah, mas isso faz de você, seu homem branco, um colonizador no Brasil!”. Então eu deveria ficar quietinho para nos armos todos por progressistas com muita consciência social sem nenhuma consequência material, enquanto ambos nos beneficiamos? Não conte comigo para a manutenção do pacto de silêncio colonial. Embora o filho não deva responder pelos crimes de seu pai, não separo, diferente dos propagandistas do sionismo, os crimes do perpetrador da responsabilidade do beneficiário de responder pelas consequências de tais crimes. Aliás, não é porque eu ou um colono israelense qualquer nunca matamos ninguém que os crimes do colonialismo são coisa restrita ao ado.
Na verdade, os perpetradores do genocídio colonial seguem trabalhando impunemente nos dias de hoje. O latifúndio segue matando e escravizando; gangues coloniais roubando terra indígena em todo o mundo. As forças armadas coloniais se tornaram as forças de segurança que seguem existindo para proteger a riqueza dos beneficiários do colonialismo, fruto do roubo colonial. Por isso mesmo sou contra, por exemplo, o projeto de lei que estabelece o Marco Temporal de 1988 para as terras indígenas no Brasil. Enquanto isso, os beneficiários do genocídio colonial sionista defendem – e isso nos dias em que estão se sentidos bondosos com a criadagem, ou porque alguém está olhando – o Marco Temporal de 1993 na Palestina. Até o marco temporal de 1967 já está ficando raro em seus repertórios de mentiras.
Colonizador não é adjetivo, é substantivo. É uma posição social, um sujeito produzido por um jeito de ser no mundo que deve ser abolido. Enquanto seguirmos tratando uma relação social espúria não como uma chaga de nossas sociedades e sim como mácula moral, como uma coisa feia pra se dizer de desafetos e negar em nós e nos nossos amigos como indício de pureza, não aboliremos a realidade concreta. E seguiremos permitindo que colonialistas e seus serviçais com complexo de bom selvagem façam fortuna do vilipêndio dos cadáveres dos heróis da libertação anticolonial.
O que fazer? Bem, de cada um de acordo com suas capacidades. O ponto central é: a descolonização real, concreta de colônias existe no tipo de não-colonialismo que você segue, caso siga algum? A abolição concreta – não metafórica, real – de relações coloniais, da existência mesma de “colonizados” e “colonizadores”, cabe no seu plano de negócios? A sua linha de não-colonialismo tem no horizonte do possível, do desejável, a retomada de terras indígenas? Ou ela existe para que, em uma epifania, você se perdoe pelo pecado original de ser branco? Ela existe para que os colonizados que resistem por todos os meios necessários ao próprio extermínio sejam defendidos em seu direito de fazê-lo? Ou existe para aliviar a sua consciência culpada?
Peço que compreenda minha contundência. Ela é necessária porque há facínoras por aí que vivem de mercadejar a obra dos melhores de nossa classe, a eles imputando o próprio ânimo servil; fazem-no como forma de levar uma mansa vida de notário em seus próprios cartórios morais, na constante e diuturna emissão de certidões negativas de preconceito para celebridades e multinacionais. Isso nos levou ao ponto de vermos, por exemplo, aduladores e proxenetas adulterando autores de Fanon a Edward Said para defender o apartheid colonial israelense em veículos da imprensa dita “progressista”.
Eu sou um sociólogo. Meu trabalho consiste em ensinar, aprender, escrever. Isso não significa, no entanto, que o que eu sei fazer é o que vai resolver o problema. Ainda não inventaram papers que resistam às balas de Washington. Dentro das minhas capacidades, trabalho para que não esqueçamos que a missão de todo anticolonialista é fazer a descolonização das colônias. Isso é o que eu sei fazer. Pode ou não ser o seu caso, e tudo bem: cabe a cada um de nós descobrir como podemos contribuir para a libertação coletiva. Trilhe seu próprio caminho e logo você encontrará outros que lhe ajudarão nessa caminhada; ela tende a ser um trabalho em equipe. Se der tudo certo, a gente se vê lá na frente. Até lá!
Sim, eu tenho sonhos de pacíficas vitórias, mas
Enquanto eu não posso, gasolina e fósforo.
Gasolina e fósforo – Don L e Nego Gallo.
Caio Porto é doutorando em sociologia na Universidade de Brasília. Integra o Grupo de Estudos Retóricas do Poder e Resistências (Gerpor-UnB) e o Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos (CEAI-UFS).
Esse texto expressa a opinião do autor.
Notas
- Eduardo Mondlane. Lutar por Moçambique, 1995. Também publicado em partes em Revolução Africana: Antologia do pensamento marxista por Manoel e Landi (orgs.). Autonomia Literária, 2020). Mondlane, no capítulo 2 de seu livro, cita Freyre e etnógrafos portugueses como forma de estabelecer as bases de seu pensamento revolucionário sobre a estrutura social das colônias portuguesas. Ele se apropria dos autores e vota seu pensamento contra eles. Ato contínuo, como ator político, funda a Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO. Morre assassinado em 1969, vítima de uma carta-bomba. Uma curiosidade: enquanto pesquisava para escrever esse texto, esbarrei numa monografia defendida na Escola de Comando do Exército sobre a guerra de libertação nacional em Moçambique. Se quiser seguir sem estudar os opressores, continue: eles estão nos estudando. ↩︎
- Quem lembra do secretário de cultura que citou Goebbels? Você já pensou que alguém que se submeteu ao suplício de ler um discurso de um nazista foi responsável por notar a referência? Não fosse essa pessoa, quem perceberia? ↩︎