Sobretudo, quero esclarecer uma questão aqui: a polêmica com relação às minhas pesquisas, tanto na graduação quanto no mestrado, é a pedra que parecia ser um atalho no meio do caminho. Essa (e outras) dificuldade poderia ter-me feito deixar pra lá e ter alcançado posições de destaque na universidade. Se tivesse feito isso, estaria negando a minha origem, mas, principalmente, a classe social à qual pertenço. No entanto, fiz o contrário, e isso, consequentemente, me levou ao afastamento desse ambiente. A universidade é uma estrutura rígida e com hierarquia de poder, como qualquer outra instituição. Portanto, é evidente a disputa de poder e de teorias. E elas podem favorecer ou não a manutenção do poder da burguesia ou do próprio latifúndio. 382my
Lembro bem de uma colocação de uma professora, na UFPE, em 2016. Mesmo achando a história um absurdo, sobre a tentativa de outros em forçar uma estudante a retirar parte da fundamentação teórica, por questões políticas, ela disse que a polêmica com o trabalho estava relacionada à própria posição dele. Ao ouvir tal posicionamento, marcou uma lembrança em forma de memória, agora refletindo sobre o assunto fiquei pensando e fazendo associações sobre a fala de um editor-chefe, de um grupo editorial aqui, do Brasil, em 2021, quando explicou em determinada aula que os livros mudam os rumos da história da humanidade quando são colocados em prática. Este editor-chefe, na ocasião ministrava uma aula, e citou como exemplo a obra O Capital, de Karl Marx. Quantas vezes Marx fora expulso de sua residência em vida? E quantas vezes o seu livro foi lido por pessoas que construíram processos revolucionários? Processos estes, inclusive, capazes de parar um regime totalitário (tal como o nazi-fascismo, na Europa).
Na primeira polêmica, o problema foi “a evolução das relações semifeudais”; no segundo caso, o do mestrado, a polêmica se tratava do objeto todo, da metodologia à teoria. Categorizar o que foi pior é até difícil; a imposição de mudar radicalmente o texto em poucos dias (retirar um capítulo de 100 páginas, além de termos, tal como semifeudalidade e capitalismo burocrático) não foi nada tranquila quando se houve dias e noites de trabalhos! A frase interessante que nunca esqueço dita no dia da qualificação foi: “A semifeudalidade é um assunto morto e enterrado”. Por que?! A ditadura militar enterrou o debate da semifeudalidade?!
Ora! Se o camponês tem relação direta no processo revolucionário brasileiro, eu poderia dizer que é melhor dizer que ele não existe, negando a semifeudalidade. O objeto investigado nas minhas pesquisas sempre foi o camponês, então, não teria como dizer que não existe. Quando chegamos, em 2019, nas formulações da renda fundiária capitalista e percebemos que ela determinava o caráter da propriedade privada da terra, perguntei o seguinte: “Se todos leram Marx, o livro III, como não perceberam alguns detalhes, lá em 1950?”. Alguém refletiu e disse: “O camponês ou despercebido como objeto de pesquisa. Ele nunca foi colocado como uma classe e força de interesse de alguém ou grupos políticos”.
Temos aqui duas problemáticas:
- Quando se nega a realidade concreta, se nega o entendimento sobre ela;
- Oposição clara à própria concepção de método do materialismo histórico dialético.
O camponês vivo é incômodo demais para aqueles que sempre negaram a sua existência em seus objetos de pesquisa. Pela primeira vez, uma mulher e filha de camponeses estava dizendo que o camponês é um espectro vivo na teoria de Karl Marx, aquele que de forma profunda estudou O Capital em suas dimensões diversas, inclusive, no campo. E, portanto, neste livro encontramos a fundamentação inicial para a semifeudalidade.
Uma verdade: a neutralidade não existe na ciência, mesmo quando o (a) cientista não se dá conta a quem está favorecendo a sua escrita e posição nela desenvolvida. A neutralidade reina nos cemitérios, apenas.
Após alguns meses da defesa da dissertação, não demorou muito para que algumas editoras entrassem em contato com interesse para a publicação, em livro, da minha dissertação. Segue os pontos de avaliação de uma dessas editoras: “A contribuição da obra para o desenvolvimento científico e tecnológico da área é imensa; Devido à atualidade da temática; Clareza na abordagem dos temas e fluidez na leitura; Estrutura e rigor científico da obra; Precisão de conceitos, terminologia e informações; Bibliografia referenciada que denota amplo domínio de conhecimento; Criatividade e inovação na abordagem geral e/ou métodos adotados para o campo de conhecimento, ou para aplicações técnicas; Potencial para ser referência relevante para artigos, teses, ou dissertações da área”. Parece-me que o conselho editorial viu questões diferentes.
O livro recebeu o título de A renda fundiária na transposição do Rio São Francisco e foi publicado em 2021. Nessa obra, o conceito de semifeudalidade não aparece como teoria principal, pois houve mudanças no texto para que a qualificação e a defesa pudessem acontecer. No entanto, diante do objeto de pesquisa, há explicações gerais sobre a renda fundiária capitalista que explicam o conceito de semifeudalidade. Umas delas é que a condição jurídica da posse torna mais frágil a propriedade dos camponeses, embora não ter o direito a propriedade jurídica, não seja o aspecto mais importante que determina o risco da ameaça constante dessa classe em perder seus terrenos para o capital agrário e o latifúndio local.
Na verdade, é a condição econômica de sua propriedade que determina, em última instância, a fragilidade jurídica de sua posse. Se a propriedade privada do solo é capitalista ou não, dependerá do tipo de renda que ela proporciona ao seu proprietário. Se o camponês não é capitalista de si mesmo, logo, ele foi destituído do direito ao o à terra nas condições jurídicas capitalistas da própria concorrência. Para ele, foi negada a propriedade capitalista, e, consequentemente, o direito de ficar com parte da renda fundiária capitalista ou parte do lucro da sua produção.
Com certeza, isso explica por que o capital agrário (latifúndio) ou mesmo o Estado brasileiro não paga renda capitalista ao camponês. Historicamente, o campesinato sempre auferiu renda feudal e semifeudal. Sendo assim, o camponês não lucra nada na venda da sua mercadoria agrícola. Nem retira o próprio salário. Por isso, em algumas condições de mercado, o preço agrícola de determinados produtos, atualmente segue sempre sendo baixo, por exemplo, o preço da banana nacional, do inhame e da macaxeira, não ultraa R$ 5,00 nas feiras locais e regionais pelo Nordeste brasileiro.Desse modo, com a finalidade de levar a teoria à prática, digo que a exposição responde uma pergunta elaborada ainda na infância: “Se trabalhamos todos os dias, plantando feijão e milho, então, por que somos pobres?”. A pergunta investigativa precisaria de longos anos de estudo para ser respondida. Se a exposição, aqui, responde à formulação inicial, precisamos afirmar que a semifeudalidade é a explicação mais materialista, histórica e dialética da nossa realidade, portanto, sim, ela é científica. Essa verdade nos leva a outra tarefa: como solucionar essas contradições postas? Se a teimosia me persegue, herança do povo camponês, que parece calar em alguns momentos, em busca de refúgio de fôlego, para ganhar forças e permanecer lutando. Assim, conheci a história de uma das classes que mais ama a sua terra. O camponês vivo permanece florescendo na sua luta prolongada por uma vida melhor.