Essa reportagem é a terceira e última parte de uma série de reportagens publicadas em AND com o mesmo nome. As partes 1 e 2 podem ser lidas aqui e aqui. 41733w
Dentre os vários manuscritos do século XVI que citam direta ou indiretamente a existência da grande aldeia guarani na Baixada do Maciambu/ Porto dos Patos (em Palhoça/SC, em frente à Ilha de Florianópolis), que acolheu o descobridor do império incaico Aleixo Garcia (e seus colegas náufragos da expedição espanhola de Solís de 1516), destacam-se 2 deles, por serem curiosos.
Trata-se de uma carta e de uma lista de compras. A carta foi redigida por um marinheiro a seu pai, onde narra coisas fabulosas que sucederam no Maciambu, inclusive vinculadas a ouro e prata.
A lista de compras, por sua vez, foi escrita por ninguém menos que um dos náufragos do próprio grupo de Aleixo, que viveu junto com ele e os índios na grande aldeia.
Mas afinal que papéis são estes e onde estão? São verdadeiros? Que outras aventuras e peripécias viveram seus autores?
Saiba das respostas aqui nesta Parte 3 da reportagem.
Recordando o que publicou AND na Parte 1, a descoberta do registro de 4 sítios arqueológicos num certo ponto da Baixada do Maciambu, cujos vestígios indicaram a presença de um amplo aldeamento guarani no local, foi feita pelos pesquisadores de SC, Rosana Bond (de Fpólis) e Fábio Krawulski Nunes (de Jaraguá do Sul).
Ambos estudiosos notaram que os 4 sítios poderiam ter sido originalmente unidos, devido à pequena distância entre um e outro. Esta provável localização da morada de Aleixo Garcia solucionou um grande mistério da história de SC e da América do Sul.
Mel, galinhas e palmitos 624k1r
O náufrago que deixou anotada uma lista de compras foi Henrique (ou Enrique) Montes. Em espanhol o manuscrito é nomeado de Relación de lo recebido y pagado por Enrique Montes en la Isla de S. Catalina, é datado de 1527e está guardado no célebre Arquivo Geral das Índias em Sevilla, Espanha, sendo portanto verdadeiro.
Este morador da Baixada do Maciambu foi quem, com total participação dos índios, abasteceu o famoso navegador Sebastião Caboto quando este precisou construir uma nova embarcação, numa praia de Florianópolis, entre novembro de 1526 e fevereiro de 1527, após o afundamento da sua nau capitânia na Ponta dos Naufragados (o “iceberg do Titanic” catarinense).
O papel em letra caprichada (ver foto) (*) mostra que a aldeia da Baixada do Maciambu era grande e produtiva o suficiente para entregar a Caboto, em seu estaleiro no outro lado da baía mas a pouca distância (em canoa) da moradia de Montes e dos guaranis, por exemplo 398 galinhas, 273 veados, e muitíssimos favos de mel, palmitos, ostras, milho, banha, carvão, feixes de vime e palha, etc.
Miçangas e espelhos 1gy4e
Como pagamento Montes e seus fornecedores indígenas receberam, conforme a lista anotada, úteis peças de metal como cunhas (ferramenta geralmente de ferro naquele século XVI usada para separar objetos, levantá-los ou mantê-los em um lugar) anzóis e facas. Mas também “novidades” da Europa tais como miçangas coloridas, espelhos e pentes diferenciados (as tribos brasileiras usavam pentes feitos de outros materiais).
Metais trazidos pelo companheiro Garcia 3o6z1
Foi o mesmo Henrique Montes a pessoa que informou em 1526, meses antes de Caboto afundar, ao navegante castelhano Rodrigo de Acuña ao ar este pelo Porto dos Patos (quase ao lado da grande aldeia), que tinha consigo em sua morada indígena, amostras de metais preciosos (depois identificadas como peças incas de ouro e prata) enviados por um companheiro náufrago chamado Garcia, que tinha ido ao “sertão”, a distantes e altas montanhas, em busca de um “rei branco” e seu reino riquíssimo.
(OBS: Nos anos 1500, os europeus invasores, por algum erro de comunicação, ou algum propósito dissimulado, diziam que o soberano inca do Peru, Huayna Capac, tinha a pele branca.)
Um cavaleiro da Casa Real 3n2i4i
Henrique Montes não encerrou sua vida de aventuras naquele tempo em que morou com a tribo guarani e conheceu a Caboto. Embora a serviço da Espanha, era português e se crê que tinha 17 anos quando afundou em SC junto com Aleixo Garcia e os outros.
Após o episódio de Caboto em SC, viajou com ele ao Rio da Prata/Rio Paraná e logrou voltar à Europa.
Foi laureado pelo soberano de Portugal como Cavaleiro da Casa Real e, em 1530, como Provedor de Mantimentos da frota de Martim Afonso de Sousa, que viria ao Brasil como seu 1o governador.
Recebeu deste uma sesmaria em S. Vicente/SP, onde morreria em 1532 durante um ataque de castelhanos e índios ao vilarejo.
Uma vibrante carta guardada num mosteiro 221o
Por outro lado, o autor da carta redigida em 1528 foi Luis Ramírez, secretário tripulante da expedição justamente de Sebastião Caboto ao sul da América (famoso navegador e piloto-mor de Espanha, cartógrafo, 1476-1557).
O documento de Ramirez, conforme historiadores “uma das melhores e mais vibrantes crônicas” sobre os primórdios de SC e América do Sul, é uma carta que este mandou a seu pai, é verdadeira e está arquivada na biblioteca espanhola do Real Mosteiro do Escorial, a 45 km de Madri.
“Vimos aproximar-se uma canoa de índios…” 1o401k
Na carta, Ramirez narra como Caboto teve contato com os moradores brancos e guaranis do Porto dos Patos no convés da nau capitânea (antes do acidente que a fez afundar na Ponta dos Naufragados): “…vimos aproximar-se uma canoa de índios… (e posteriomente) vimos vir outra canoa de índios e um cristão dentro (dela), o qual deu notícias ao Capitão Geral (Caboto) de como estavam naquela terra alguns cristãos (…) outros dois cristãos que se chamavam Melchor Ramirez, habitante de Lepe (vila espanhola) e Enrique Montes, os quais haviam ficado de uma armada de Juan Díaz de Solís (Aleixo Garcia)…que havia mais de 13 ou 14 anos que estavam naquela terra…”
Em sua mão, parte do tesouro de Aleixo 376i5y
Dias depois foi o próprio Henrique Montes que subiu na embarcação e fascinou a Caboto dizendo a ele, conforme a carta, que “…entrando pelo Rio de Solís (Rio da Prata, Argentina) iríamos dar num rio que chamam Paraná, o qual é muito caudaloso…e que entrando por este dito rio não tinham em muito carregar as naus de ouro e prata…”
Quase chorando, abriu a mão e mostrou a Caboto contas de ouro e prata (que haviam sobrado do tesouro inca enviado à aldeia do Maciambu por Aleixo desde o Paraguai, pouco antes de morrer). Diz a carta que falou Montes, emocionado, com a mão aberta: “Mirem, filhos, que disto aqui serão carregadas as naus, com o ouro e com a prata!”
Outro trecho da carta confirma que Melchor e Montes, companheiros de Aleixo, viviam no Porto dos Patos/Baixada do Maciambu, narrando que a nau capitânea afundou quando Caboto quis ir até aquele Porto (para ver uma reserva de madeira que estava precisando e talvez para conferir se na grande aldeia não haviam sobrado outras peças do tesouro): “…(o naufrágio ocorreu quando a nau quis) penetrar pelo canal que existe entre essa ilha e o continente para ir fundear na boca do rio e porto chamado dos Patos, onde seria fácil proporcionar-se a madeira que necessitava e onde também Montes e Ramirez (Melchor) tinham suas vivendas.”
Saudade do pai, antes de morrer numa batalha 113n5s
A vida de peripécias de Luis Ramirez não durou muito na América do Sul, após o breve convívio com os colegas de Aleixo.
Depois do susto do naufrágio de Caboto em SC; do espanto de ver ouro e prata nas mãos de um náufrago emocionado; de constatar a fartura de alimentos produzidos na grande aldeia do Porto dos Patos/Maciambu ele morreu um tempo depois.
Após chegar com Caboto no Rio da Prata, vê-lo construir ali um forte (Sancti Spiritus), e buscar inutilmente o reino dourado e prateado ao norte do Rio Paraná e Paraguai, sentiu saudades da família.
Foi então que em julho de 1528 escreveu a carta a seu pai. Pouco mais tarde porém, setembro de 1529, morreu em um ataque indígena a S.Spiritus.
Oposição a “Ratanabá” 545r1u
Enquanto Bond e Nunes apresentam os manuscritos para fundamentar aspectos inéditos do Peabiru, a história do Caminho em SC acaba de receber novo ataque da Pseudociência. Isso já ocorreu antes.
Em paralelo às revelações dos 2 pesquisadores sobre a provável morada do descobridor dos incas, surgiram há algumas semanas, novembro, versões sem provas sobre “achados arqueológicos” peabiruanos na zona de Garuva e ville (onde o Caminho nunca ou).
A divulgação foi feita pelo site Brasil Primitivo (BP) em parceria com a Dákila Pesquisas (do ufólogo Urandir Fernandes). A Dákila é a criadora da fictícia cidade de Ratanabá, com antiguidade de “milhões” de anos, quando os seres humanos sequer existiam.
E o Brasil Primitivo pertence ao pequeno empresário de turismo, André Rockenbach, já apontado por AND em novembro de 2023 como defensor da tese de que incas peruanos estiveram influenciando obras em SC, como a Escadaria do Monte Crista/Garuva. A versão já foi negada pelo IPHAN (Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e ANPUH (Associação Nacional de História).
“Antigas civilizações” no Quiriri? o12a
Desta vez o BP e a Dákila falaram de supostas “evidências de antigas civilizações” em pedras alinhadas, no Campo do Quiriri (ville/Garuva).
Ocorre que o agrupamento de rochas foi negado
por especialistas como obra humana e sim definido como fenômeno natural, geológico, relacionado a episódios conhecidos, em Geologia, como lineamentos ou lineações.
Entre estes especialistas estão Marco Aurélio De Masi (diretor da De Masi Arqueologia, Florianópolis), a arqueóloga Cláudia Parellada (coordenadora do Museu Paranaense, Curitiba) e Reginaldo de Carvalho, graduando em Geografia na Univille/ville.
Reginaldo, experiente frequentador da região, um dos roteiristas do filme catarinense “Caminhos da Serra do Mar”, lançado com sucesso no ano ado, é autor de vários artigos acadêmicos com conteúdo de Geologia, tal como O Uso do Geoprocessamento para o Mapeamento Geológico da Região Nordeste de SC, publicado no Caderno de Iniciação à Pesquisa da universidade vilense.
Ao ver na mídia as supostas “ruínas” do Quiriri, ele sugeriu com humor, na rede social, que os especuladores precisavam “estudar Geologia”.
Um membro da Sociedade de Arqueologia Brasileira fez uma observação semelhante: o arqueólogo Artur Franco Barcelos, da FURG/RS, questionou André Rockenbach na rede social: “…antes de se falar em qualquer hipótese não caberia consultar um geólogo?” Não teve resposta clara.