Nota sobre o não dito em ‘Ainda Estou Aqui’ 6i6p43

Falta a Ainda Estou Aqui uma contextualização mínima que, mesmo sob o enfoque escolhido pelo diretor, era possível e o teria tornado muito mais importante e valioso.

Nota sobre o não dito em ‘Ainda Estou Aqui’ 6i6p43

Falta a Ainda Estou Aqui uma contextualização mínima que, mesmo sob o enfoque escolhido pelo diretor, era possível e o teria tornado muito mais importante e valioso.

Ainda Estou Aqui é indiscutivelmente bem feito, tanto quanto Central do Brasil e – para o gosto do signatário – menos que Diários da Motocicleta e Linha de e (este último, uma obra-prima subestimada). Walter Salles Júnior é, claramente, um diretor de primeira. 4q1di

O que lhe subtrai valor não como obra de arte dramática, mas como meio de conhecimento histórico, é ser um filme de uma só personagem (por consequência, também quase de uma só atriz, Fernanda Torres, cuja magistral interpretação torna a obra melhor do que seria se ela houvesse estado menos inspirada. A premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA ao filme, mas não à atriz, é um contrassenso).

Falta a Ainda Estou Aqui uma contextualização mínima que, mesmo sob o enfoque escolhido pelo diretor, era possível e o teria tornado muito mais importante e valioso.

Um de seus pontos altos se dá no tocante ao período posterior à ditadura, e consiste em não apresentar a transição ao gerenciamento civil do Estado, na década de 1980, como happy end; retratar não só o longo caminho de Eunice Facciola Paiva para obter a certidão de óbito de seu marido, mas – mais importante – sua atuação como advogada de povos indígenas, a mostrar que as mazelas estruturais do país permaneceram intactas, começando pela principal: a questão da terra.

Porém, o mesmo não se dá quanto a outros aspectos que também teria sido importante retratar – mormente porque o apagamento da memória do período 1945-64 – ápice das lutas populares, da cultura e da vida democrática no Brasil – é uma realização conjunta da ditadura de 64 e do regime liberal (mas não substantivamente democrático e, na última década, nem mesmo plenamente civil) que a sucedeu.

Quase ninguém sabe, hoje, quem foram os personagens históricos retratados na obra, em geral referidos nela só pelo prenome ou pelo apelido. Mostrar isso não teria levado mais que 5 minutos, que poderiam ser somados às mais de 2 horas que dura a obra ou substituir alguma das cenas de faniquitos das filhas quase adolescentes do casal Paiva.

Quem não tiver estudado a fundo a história daquele período – e a maioria dos pós-graduados em História não a estudou; imagine-se a população em geral – sai do cinema quase sem saber por que, afinal, a ditadura sequestrou, torturou e matou o engenheiro, empresário e ex-deputado Rubens Paiva.

Isso é brevemente explicado a Eunice por Baby, amigo e sócio de Rubens na pequena empresa de engenharia, na cena em que conta a ela o que eles e outros faziam em apoio a quem se colocava na linha de frente da luta contra o regime. Mas o filme não conta que:

  • Baby é Luiz Fernando Bocayuva Cunha, que antes havia sido diretor do jornal Última Hora (ajudando a viabilizá-lo política e economicamente) e depois foi deputado pelo PDT e secretário de governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro.
  • Dalal, sua esposa, é Dalal Achcar, bailarina clássica de considerável importância.
  • Gaspa, amigo de Rubens e Baby, é Fernando Gasparian, industrial têxtil e depois dono de um jornal (Opinião), uma editora (Paz e Terra) e uma livraria (Argumento) de excelente nível e linha desassombradamente contrária à ditadura em todos os âmbitos. Na transição ao governo civil, como deputado constituinte, foi uma voz solitária e aguerrida contra a usura bancária que logo se tornaria – com o Plano Real – um dos pilares da ordem econômica que agora faz água.

O autor agradeceria a quem informasse quem é ou foi Raul, aludido por Baby na mesma cena.

Quanto a Rubens, é informado o motivo imediato de sua prisão (a suspeita dos serviços de inteligência sobre suas comunicações com exilados que haviam tomado parte na luta armada), e que ele fôra deputado pelo Partido Trabalhista. Nada mais.

Por que não mostrar que, antes de 64, ele investigara a fundo, como relator da I do IBAD, articulações golpistas no meio empresarial e o financiamento da CIA a elas – coisa que lhe valeu a inclusão na primeira lista de cassados com base no AI-1? Para além do motivo imediato da prisão, cabe supor que esse fato lhe valesse uma “atenção especial” do regime.

Por que não mencionar que, desencadeada a operação militar que resultaria na derrubada de João Goulart, Paiva foi dos que tentaram organizar a resistência, conclamando o povo à luta ao fim desautorizada pelo presidente?

Bocayuva, carioca de raiz trabalhista; Gasparian e Paiva, paulistas oriundos de meios conservadores, arrebatados, quando da campanha do petróleo, por um sentimento nacionalista que os aproximaria de outras lutas do povo – pois não há, e esta era uma distinção fulcral entre seu ideário e o “Brasil potência” de Médici e Delfim, nação grande, livre e altiva se sua população trabalhadora vive e morre na miséria – eram burgueses típicos: apreciadores de bons uísques e charutos, casados com senhoras elegantes ou (imagine-se o escândalo para a época) em segundas núpcias com bailarinas um tanto mais jovens.

Mas burgueses de uma espécie sempre rara no Brasil, e que também foi alvo do golpe de 64 e da ditadura: os que queriam que os trabalhadores também vivessem bem.

“Milhões para os empresários, milhares para os trabalhadores. Fábricas, estradas, muito alimento, casas em lugar de malocas e barracos” – nas palavras que José Maria Arguedas faz dizer Don Fermín em Todas las Sangres, seu magnum opus – e sem o anticomunismo desse personagem 

Consequentes com esse ideário, e por defender o país e o povo, esses homens arriscaram e perderam seus negócios, sua tranquilidade e, no caso de Paiva, sua vida.

Histórias parecidas à do próprio Jango, fazendeiro riquíssimo. Com muitas ressalvas, pode-se incluir nesse grupo o pai do diretor, Walther Moreira Salles, que, embora – ao contrário dos demais – tenha se mantido como próspero homem de negócios, sobrepondo sempre a dimensão econômica à política, nunca deu as costas aos trabalhistas caídos em desgraça (era avalista de Jango) nem fez muito esforço para se entender com a ditadura que, por um lado, o beneficiava com uma política de concentração bancária sobre a qual ele não influiu, tornando maior seu banco, que já era grande antes do golpe; mas, por outro, dirigia-lhe represálias que o obrigaram a se exilar com sua família.

Caso distinto ao dos hoje sócios dos Moreira Salles no negócio bancário, sobre o qual Walter Júnior não tem ingerência: os Setúbal, do Itaú – estes sim, donos de um banco até então insignificante que cresceu de modo exponencial na ditadura graças não só à política econômica, mas à relação muito próxima com Delfim Netto, cultivada – entre outros meios – via doações ao aparato de repressão e tortura da Operação Bandeirante (Oban). Bajuladores e sócios do regime, agraciados por isso com a prefeitura de São Paulo entre 1975 e 79 e com grandes negócios, sempre.

Rubens Paiva, Fernando Gasparian e Luiz Fernando Bocayuva Cunha mereciam, ao menos, que os brasileiros soubessem quem eles foram. Ainda Estou Aqui, sem desconsiderar seus outros méritos, contribui muito pouco para isso.

Henrique Júdice é advogado, jornalista, tradutor e professor. Membro da diretoria da Associação Brasileira dos Advogados do Povo Gabriel Pimenta (Abrapo). Realizou trabalhos de pesquisa e consultoria para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Este texto expressa a opinião do autor

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