O termo “crise” vulgarizou-se já completamente entre nós. Com efeito, além de ser usado como desculpa pelos “governantes” para justificar a ocorrência de problemas corriqueiros desde há tempos, os indicadores macroeconômicos divulgados regularmente pelos jornais não podem descrever a expressão sombria que tem um trabalhador no instante em que, chegando em casa, dá-se conta que nada possui para alimentar os filhos. 1n3752
Àqueles para os quais os tempos de “normalidade” já pouco se diferenciam da penúria, a “crise” tem um significado bastante concreto: espessa miséria, pauperismo. Embora poderosas engrenagens trabalhem para tornar essas pessoas invisíveis, elas estão por toda parte.
Caminhando pela rua, outro dia, num domingo de manhã, vi-me cercado por gente que parecia retornar de alguma guerra. Homens mutilados caminhavam apoiados em muletas; mulheres prematuramente envelhecidas, com lenços na cabeça, andavam ligeiramente curvadas, os olhos voltados para baixo, circunspectos. Suas roupas, embora irremediavelmente puídas, traziam-nas muito limpas e bem adas. Andavam em silêncio e evitavam os trechos das calçadas onde grupos de jovens alcoolizados ainda aproveitavam o final do sábado.
Reparei, intrigado, que todos ali carregavam garrafinhas d’água. Mais adiante aquela aglomeração formava um bloco compacto de pessoas, que entravam, ordeiramente, num grande salão encimado pelo nome de uma igreja e uma placa onde se lia em letras garrafais: “TRATAMENTO COM A ÁGUA”. Embaixo, o anúncio prometia resolver até mesmo “as causas mais difíceis”.
Para quê as faculdades de medicina se, afinal, podemos resolver tudo, inclusive as “causas mais difíceis”, com a nossa água de todos os dias? Confesso que esse pensamento superficial me ocorreu a princípio. Mas, refletindo mais um pouco, veio-me à mente outro: quem disse que essas pessoas têm o aos hospitais? Falo em hospitais, mas se me referisse às boas escolas, às universidades públicas, ao teatro, o resultado seria o mesmo, isto é, nenhum.
A miséria econômica atraindo uma série de outras misérias físicas e espirituais, o alcoolismo, o desemprego, o filho ou o sobrinho preso em Bangu, a doença que progride sem que se tenha recursos para tratá-la – provavelmente são esses os caminhos que levam ao “tratamento com a água”. Estava certo quem disse, uma vez, que o ser humano pode resistir às maiores privações, contanto que conserve consigo a esperança.
Essa necessidade de esperança, quando manipulada pelos charlatães que fazem fortuna (ou votos) com a desgraça alheia, não a de um castelo de areia, inofensivo, triste. Porém, no dia em que a teimosa fé no futuro que têm as pessoas simples do povo encontrar uma força organizada que demonstre os caminhos reais através dos quais pode realizar-se – a conquista, aqui mesmo na Terra, de uma vida digna, humana na acepção da palavra – converter-se-á numa potência irresistível, capaz de realizar milagres verdadeiros como não foram descritos pelos mais incríveis mitos de qualquer religião.