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No dia 6 de janeiro, o jornal A Nova Democracia e a Paêbiru Realizações iniciaram um ciclo de debates semanais como parte da campanha de financiamento coletivo do filme Livres; um documentário que denuncia as condições do sistema prisional brasileiro a partir da perspectiva de seis ex-presos. Nosso primeiro entrevistado foi o delegado Orlando Zaccone, jornalista, estudioso do direito penal gestor e idelizador do Projeto Carceragem Cidadã — projeto no qual presos tiveram a oportunidade de assitir filmes, partipar de rodas de música e outras oficinas de artes. A partir dessa iniciativa, nossos personagens decidiram sair do crime e produzir um filme no qual eles contam e encenam suas histórias sobre o tempo em que estiveram presos.
AND: Orlando, como foi sua experiência dentro do sistema prisional?
Orlando: Nós ajudamos muito a acabar com as carceragens em delegacias no Rio. Inclusive ganhamos um prêmio de polícia cidadã pelo voto dos próprios presos. Quando recebemos o prêmio no Teatro Municipal, nós lemos um manifesto pelo fim dessas carceragens que nós chamávamos de Polinter. Porque a simples existência dessas prisões improvisadas era uma afronta à própria lei de execuções penais, na qual não estava prevista a existência de carceragens em delegacias. Lugares sem quaisquer estruturas para ar a quantidade de pessoas que se encontravam presas. Quando eu cheguei à 52ª DP, em Nova Iguaçu, nosso objetivo central era fazer do tempo dos presos algo extremamente útil. Conseguimos educação para os presos com direito à matrícula no sistema público de ensino. Além disso, fizemos o Carceragem Cidadã, dando aos presos a oportunidade de se transformarem a partir da arte.
AND: Existe algum exemplo prático dos resultados do projeto?
Orlando: O Gilson, personagem do filme Livres, me procurou quando eu já estava no comando da 18ª DP dizendo que esse nosso projeto Carceragem Cidadã mudou a vida dele. Uma vez na internet um cara veio pra mim e criticou o projeto dizendo: ‘Pois é né doutor! Só a vítima não tem uma segunda chance’. Se o preso, homicida, estuprador, não tiver uma segunda chance, são duas pessoas que não terão uma segunda chance. A pena é uma forma de se multiplicar a violência, uma forma de vingança, se você observar por esse lado.
AND: Em sua opinião quais são os aspectos sociais dessa violência e desses crimes?
Orlando: Na verdade, o crime não está na natureza. O crime está na construção. A figura do criminoso é uma figura construída. Porque o presidente da Ambev é um grande empresário e o traficante de maconha é um bandido? Quer dizer que se liberarem a maconha o traficante se transformaria em um grande empresário também? Até mesmo o homicídio faz parte de uma construção política. Porque, repare, matar alguém pode não ser crime. Como nos autos de resistência, por exemplo, nos quais, em grande parte das ocasiões, todas as evidências são forjadas e o jovem supostamente morto pela polícia é vítima, na verdade, da construção de um homicídio. Toda sociedade tem um direito penal para controle de crimes comuns, mas, na nossa sociedade, esse direito é usado para o controle social.
AND: E existem consequências dessa política de controle social dentro do sistema prisional?
Orlando: Sim, claro. Hoje nós somos o terceiro país que mais encarcera no mundo. No capitalismo, as prisões começam como unidades produtoras. Os primeiros presídios deixaram de ser lugares de produção porque a mão de obra era muito barata e a concorrência acaba sendo desleal com os grandes empresários capitalistas. Hoje, as prisões brasileiras são depósitos de gente, mas nós estamos entrando em uma fase na qual o preso vai cada vez mais se transformando em um valor econômico. Nós temos que lutar contra esse movimento de privatização dos presídios, pois não é issível que o preso, ao invés de ser enxergado como um ser humano, é visto como uma possibilidade de lucro, um valor econômico. Nesse ritmo, as leis vão ficando cada vez mais rigorosas, pois quanto mais gente houver dentro do sistema prisional, maior o lucro das empresas por trás desse processo de privatização.
Antes de qualquer coisa, é preciso diminuir o número de presos, pois é impossível humanizar o sistema com uma população carcerária dessa dimensão. Depois de prender menos, o que precisamos fazer é transformar o tempo dos presos em tempo útil. Mas, no Brasil, existe a ideia de que um bom sistema prisional é aquele no qual não há fugas e rebeliões. Por exemplo, os presídios do Rio de Janeiro são vistos como eficientes porque ninguém foge nem faz rebelião. Isso é tão absurdo que, na minha opinião, é como dizer que um arquiteto fez um bom trabalho porque o prédio não caiu.
AND: É estranho observar que, mesmo diante dessa análise, há pessoas exigindo mais penas e o enrijecimento das leis, como a proposta de redução da maioridade penal.
Orlando: O Brasil deveria estar mais preocupado com a criança e o adolescente vítimas de crimes. Esse ranking nós lideramos. Têm pesquisas que mostram que, do total de atos infracionais cometidos por jovens, 90% não possuem nenhuma violência. Muitos desses casos estão relacionados ao transporte e consumo de drogas. Porém, quando se pensa em adolescente, ou menor do tráfico, já se pensa em um garoto com um fuzil na mão. Mas, na verdade, existem inúmeras funções no tráfico de drogas que não são violentas, como o ‘avião’ [que transporta a droga] e o ‘olheiro’ [que observa a movimentação da polícia]. Segundo as estatísticas, o soldado, que anda armado, na maioria das vezes é morto, mesmo quando capturado com vida. A proposta da redução da maioridade penal visa manter o jovem preso por mais tempo, pois nós já encarceramos adolescentes, mas chamamos esse encarceramento de medida socioeducativa, internação. No entanto, o máximo que um jovem pode cumprir de internação são três anos.
AND: E o que mudaria com a redução da maioridade penal efetivamente?
Orlando: O que se exige com a proposta da redução da maioridade penal é que essas penas sejam de 10, 15 anos. Isso tudo é um conjunto de medidas que visam ludibriar a sociedade, fazê-la acreditar que algo está sendo feito com relação à criminalidade. Quando, na verdade, depois que o Brasil atingiu o posto de detentor da terceira maior população carcerária do mundo, o número de homicídios, por exemplo, aumentou. Muitas pessoas acreditam que quanto mais se prende, mais se combate o crime. Isso é uma grande fantasia. O que combate o crime são políticas públicas.
AND: O que você pensa a respeito da proposta de pena de morte no Brasil?
Orlando: Quando eu fui estudar o doutorado, minha grande pergunta era: Como um país que não tem pena de morte como o Brasil pode produzir uma letalidade maior do que a dos países que têm a pena de morte regulamentada? Em 2011, a Anistia Internacional fez uma pesquisa em 20 países onde existe pena de morte. Nesse ano, esses 20 países, juntos, produziram 676 execuções pela pena capital. No ano de 2011, somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 940 mortes a partir de ações policiais. Isso representa 40% a mais do que o total de pessoas condenadas à morte em um ano em 20 países onde há pena de morte. Essa letalidade da polícia brasileira é regulamentada a partir do momento em que os autos de resistência são arquivados. Aí entra a figura do promotor de justiça, do delegado, do juiz que irá arquivar o processo. Essa é a forma jurídica da política de extermínio.
AND: E como podemos evidenciar na prática a distinção de classe dessa política de extermínio?
Orlando: Sim, claro. Por exemplo, no caso do assassinato da juíza Patrícia Aciolli, o que se produziu em termos de investigação é de causar inveja nas mais eficientes polícias do mundo. O material comprobatório reunido pela Delegacia de Homicídios do Rio é incontestável tecnicamente. Para essa investigação foram usadas técnicas de polícias de países de primeiro mundo. Isso representa o valor da Patrícia para a sociedade. Por outro lado, o menino pobre, negro e favelado não é digno de todo esse processo. Morre como traficante sem direito a uma elucidação mínima sobre as circunstâncias de sua morte.