A descoberta do império inca por um desconhecido e humilde trabalhador de navio, náufrago português-brasileiro, sete anos antes dos espanhóis da história oficial, foi um dos episódios mais fascinantes da América quinhentista. Mas esse homem europeu, perdido no litoral de Santa Catarina, só conseguiu realizar tal façanha porque foi ajudado a ir aos Andes, pelo Caminho de Peabiru, por indígenas guaranis. 1m6bl
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Kaiowás-guaranis da comunidade Apika’y exige demarcação de terras, MS
Essa tribo primeiro o “indianizou” durante alguns anos (ensinando-lhe idioma, religião e costumes) e depois partiu para a caminhada, fazendo-lhe antes ar pelo ritual iniciático de colocar um tembetá no lábio inferior. Ele saiu de uma praia catarinense com um grupo de carijós-guaranis, mas foi no Mato Grosso do Sul (MS) que mais indígenas quiseram constituir um Exército para seguir viagem com o aventureiro, figura que para eles parecia ter as características de um caraí, líder de caminhada/oguatá.
E assim fizeram os guaranis – chamados de itatins por habitarem a região do Itatim, entre os rios Miranda e Apa (também abrangendo mais ao sul uma zona paraguaia próxima aos rios Ypané e Jejuí) –, somando ao todo mais de 2 mil guerreiros. E chegaram efetivamente na cordilheira andina! Alcançaram o reino da prata e do ouro, do frio e das grandes alturas, dos índios vestidos de lã e das suas “aldeias” feitas de pedras. Essa vibrante história, do náufrago e dos seus amigos guaranis, narramos no livro A saga de Aleixo Garcia, o descobridor do império inca publicado pela editora Aimberê/jornal A Nova Democracia.
Mas 500 anos se aram e, afinal, o que foi feito dos valentes guaranis-itatins, que conheciam os Andes e os incas, sendo respeitados por aquela famosa civilização indígena sul-americana e com ela tendo inclusive intercambiado ciências, saberes variados e hábitos? Os itatins desapareceram? Migraram? Foram extintos?
Não. Os itatins continuam vivos e habitando o sul-sudeste do estado do Mato Grosso do Sul, no Paraguai e em alguns pontos da Argentina. São hoje, seus descendentes, os kaiowás-guaranis. Os quais, a despeito de sua importância como população nativa e de seu extraordinário papel para a história do Brasil e da América do Sul, são covardemente perseguidos por latifundiários e demais selvagens das classes dominantes do velho Estado brasileiro semicolonial e semifeudal.
E mais: eles estão tão vivos que constituem hoje a segunda maior população indígena do país, cerca de 31 mil no Brasil, o que enfurece certas “autoridades” e fazendeiros, que tentam dizimá-los por todos os meios para apossarem-se de suas terras. Ao agronegócio não incomoda ficar com as mãos sujas de sangue porque existe a Rede Globo – e outros meios monopolistas da grande burguesia – para fazer propaganda a seu favor.
Os crimes cometidos pelo latifúndio no Mato Grosso do Sul têm sido atos bárbaros, como o ocorrido contra o menino Gabriel, pequenino kaiowá de 4 anos, que teve seu corpo dilacerado ao ser atropelado diversas vezes por uma caminhonete, certamente para tentar aterrorizar a tribo (sem sucesso).
Isso sem contar os tiroteios contra os assentamentos dos índios, incêndios de seus pertences, sequestros, estupros, despejos com uso da força policial e pistoleiros-jagunços, contaminação por agrotóxicos jogados de aviões, etc. fazendo com que o MS seja tristemente apontado como a “Faixa de Gaza do Brasil”, lembrando o cruel tratamento que o sionismo dá aos palestinos.
Essa definição, “Faixa de Gaza”, foi feita em 2014 pelo renomado antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista divulgada no mundo inteiro. E a situação não é para menos. O MS concentra mais de 60% dos assassinatos de índios no país. Um genocídio. Eles vivem espremidos em reservas mínimas, além de beiras de estradas e outros locais impróprios.
A Reserva de Dourados tem a maior concentração populacional do Brasil indígena, formada majoritariamente por grupos guaranis (kaiowás, nhandevas, mbyás) e terenas, onde há fome, doença, falta de água potável, nenhum o à saúde e educação, um autêntico inferno superpopulado e violento. Devido à sua relevância e realidade impactante, o lugar chega a ser tema de pesquisas acadêmicas como a de Ângela Maria dos Santos Badeca, denominada Violência contra povos indígenas: um estudo de caso na Reserva de Dourados: Guarani, Kaiowá e Terena. O trabalho foi apresentado no ano ado no Simpósio Internacional de Geografia Agrária (Singa).
Como guerreiros, sobreviverão
Embora tal subgrupo guarani seja conhecido como kaiowá (“aqueles que pertencem à mata fechada”, vegetação que praticamente não existe mais no MS por culpa do agronegócio), estudiosos como León Cadogan e Bartomeu Meliá já afirmaram que de bom grado esses indígenas aceitariam a designação de “pain” (progenitor, senhor, pessoa de respeito), título empregado pelos deuses do paraíso da Terra Sem Mal ao dirigir-lhes a palavra.
Mas o nome que melhor lhes corresponde, conforme os especialistas, é pain-tavyterã (que significa “senhores habitantes da aldeia da terra futura verdadeira”). Ou seja: até os deuses tratam esses índios com respeito e prevêem que estarão presentes no mundo, no futuro. Eles sobreviverão. Não importa o atual alto índice de suicídios (que lembra uma antiga forma de protesto, utilizada nos anos 1500 contra os espanhóis, através do qual os índios faziam greve, cessando de trabalhar para os invasores, dedicando-se exclusivamente a rituais sagrados até falecerem). Sobreviverão! Os kaiowá-guarani-pain, guerreiros, arão sobre as agressões das classes inimigas.
Divindades participam da resistência
Os deuses têm recomendado a esse subgrupo que resista e lute por seu território. Esses comunicados foram feitos, em cerimônias, a líderes religiosos (pajés) dos pain-kaiowá-guarani, que obedeceram com vigor, envolvendo-se junto com os líderes políticos (caciques) nos “processos de recuperação e reocupação dos seus territórios tradicionais específicos”, conforme informou Tonico Benites, antropólogo kaiowá-guarani pós-graduado em Antropologia Social, do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Assim, desde a década de 1980 para cá se vê a disposição cada vez mais pertinaz dos pain-kaiowás e outros guaranis do MS em garantir seus territórios, “não só relutando em sair dos lugares tradicionais como também mobilizando-se para recuperar terras compulsoriamente abandonadas no ado”, segundo o Instituto Sócio Ambiental (ISA).
Muitos tekohás (aldeamentos onde esses povos conseguem aplicar seu “modo de ser”) foram recuperados pelos índios, totalizando mais de 24 áreas ocupadas-reocupadas, superando os oito Postos Indígenas que tinham sido impostos a eles. Conforme o ISA, nas últimas décadas os guaranis (e seus aliados terenas) do MS têm dado grande ênfase às suas reivindicações fundiárias, dentro de “um processo de luta renhida”.
Para desespero do latifúndio espoliador, os kaiowá-pain-guaranis não têm medo de morrer. Para todos que quiserem ouvir, “eles dizem que dali não sairão, só mortos” – observou em 2016 a bióloga Maria da Conceição. “Preferem morrer e ser enterrados ali na sua terra”, completou.
Uma explicação do antropólogo kaiowá Tonico Benites facilita entender o motivo pelo qual esses guaranis não abandonarão suas áreas e seguirão na luta a qualquer preço: é que eles consideram a si e a seus territórios como uma família, enxergando essas terras como sendo humanas, suas parentes. Quem entregaria um familiar na mão de um inimigo?
Além disso há um outro aspecto importante. Benites esclareceu que os kaiowás-guaranis dialogam frequentemente com os deuses (Nhande Ramõi/ Nosso Avô, Nhanderu/ Nosso Pai, Tupã, e outros relacionados ao Sol). Nessas conversas, os seres divinos/os invisíveis/os guardiões fizeram com eles uma espécie de pacto. O acordo foi o seguinte: os deuses lhes dariam o espaço-natureza como elo de contato consigo, desde que dele cuidassem. Os kaiowás foram destinados a usufruir e a cuidar dessas áreas, portanto, “consideram que podem até morrer para salvar a terra (de um mau uso)”, disse Tonico Benites. E adicionou: “Há um compromisso irrenunciável entre os índios e o guardião/protetor. E ele é mútuo, recíproco”.
Sabendo disso, pode-se compreender melhor o afeto radical que une os kaiowás-pain à terra. Portanto, o grande fazendeiro destruidor e agressivo pode tirar seu cavalinho da chuva (cavalão de raça) porque os índios continuarão resistindo e guerreando.
Como tudo começou
Voltando no tempo, a história registrou a existência dos kaiowás/itatins nos anos 1500 como companheiros de Aleixo Garcia na ida ao Alto Peru. Depois, nos anos 1600, chegaram os jesuítas para doutriná-los. E quase junto, os bandeirantes para caçá-los.
Ruy Sposati/Cimi
Retomada da Terra Indígena de Cachoeirinha, em 2013
Nos anos 1700, com a do Tratado de Madri, começou uma certa “invisibilidade” desses indígenas, tudo indicando que se internaram nas matas devido a problemas decorrentes da demarcação da fronteira entre Brasil e Paraguai. Tal “sumiço” estendeu-se até o final dos anos 1800, quando o território dos kaiowás foi palco da Guerra do Paraguai (1864-70).
Em 1908 quando o geólogo, antropólogo e paleontólogo alemão Gustav Von Koenigswald visitou aquela área, ele referiu-se ao comportamento do subgrupo guarani como “arredio”, pois continuava evitando contatos com os brancos (não-indígenas).
Aquela região parece ter sido uma espécie de “refúgio” para as populações guaranis porque esteve quase isenta de processos colonizadores intensos até o início do século XX. Foi aí que isso acabou, pois entre 1915 e 1928 o SPI (Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai) criou oito Postos Guaranis no MS, confinando os integrantes da tribo dentro deles. Paralelamente, muitos juruás (não-indígenas, brancos) obtiveram títulos de propriedade privada de territórios que pertenciam a esses indígenas.
Ficou claro que a intenção do governo federal, ao criar as Reservas/Postos, foi retirar essas populações de suas terras ancestrais, adotando uma política de mercantilização e colonização dessas áreas por brancos. As quais, com o tempo, foram parar nas mãos do agronegócio (latifúndio de nova roupagem).
Hoje em dia, segundo o antropólogo Viveiros de Castro, o MS trata-se “de um território que está sendo devastado, arrasado (pelos grandes fazendeiros)”. Há desmatamento intenso e desertificação grave, relatam informes confiáveis. A seguir, complementou Viveiros: “(Penso que) vamos ver essa civilização (capitalista), que se acha muito boa, ter de se humilhar. É possível que só sobrem os índios. Eles serão um exemplo de como viver num planeta sem destruí-lo”. As palavras do antropólogo soam como algo semelhante àquilo que as divindades parecem pensar a respeito do povo valente e guerreiro com quem celebrou um pacto. Que está sendo fielmente cumprido. Destemidamente cumprido.