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Lima Barreto em 1908, ano de “Recordações do escrivão Isaías Caminha”
Afonso Henriques Lima Barreto nasceu em 1881, falecendo prematuramente em 1922, vítima de um colapso cardíaco.
Era descendente de escravos, herdeiro de uma preta alforriada e um tipógrafo pobre, portanto, sentiu desde cedo as mazelas e dores do preconceito racial e foi vítima de racismo, até mesmo nos meios acadêmicos. Por estas e outras combateu rotundamente o darwinismo social à época, que conceituava “cientificamente” o racismo. Tinha orgulho de sua cor e de sua história.
Autor de famosas obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro livro, e Triste fim de Policarpo Quaresma, sua obra mais referenciada, Lima Barreto é um dos maiores, senão o maior, romancista e periodista da história brasileira.
Retratava em suas obras os historicamente esquecidos e transcendia o papel dos comuns. Era um preto que escrevia pela e sobre sua cor. Escrevia pelos tempos do ado e de forma atualizada, visto a condição de perseguição e violência sistemática persistente sobre o povo preto. Lima Barreto era um escritor impregnado de sua história e contaminado pela realidade que lhe circundava.
Ele custou a entrar no hall da popularidade literária no Brasil, morreu desgostoso quanto ao sucesso.
Hoje em dia o colocam nas fileiras de “clássicos do Brasil”, com seus registros de alma sendo inseridos em leituras de concursos e do ensino educacional. Ao lado dele encontram-se, por exemplo, Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias), José de Alencar (Iracema) e o gênio Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas).
Tal popularidade nos dias de hoje carrega em si uma relevância imprescindível à hercúlea literatura nacional, ao mesmo tempo que imprime uma ideia de “clássico” que pode mimetizar ou mesmo igualar a gritante diferença entre as posições, concepções de mundo e formas críticas dos autores quanto às questões econômicas, políticas, culturais e, em enorme medida, raciais, visto o que pensam Lima Barreto e José de Alencar quanto às problemáticas de raça e o entendimento sobre racismo, por exemplo.
Até mesmo quanto a Machado, como assíduo crítico da aristocracia brasileira e tudo que ela representa, tanto linguisticamente, quanto criticamente, se difere de Barreto em termos de contundência no apontamento dos problemas sociais.
Lima Barreto utilizava a estética realista para expressar as angústias, aflições e entendimento que tinha sobre a condição de vida dos mais pobres, das classes trabalhadoras e do povo preto. Contava histórias de pessoas simples de um jeito simples. Barreto falava a língua do povo.
Enfim, o presente texto não visa destrinchar tais aspectos, mas sim, homenagear e debater a titânica obra de Lima Barreto, dando alguma preferência sobre seu maior livro, Triste fim de Policarpo Quaresma. Um clássico que até hoje carrega o peso das afirmações e debates e o extenso conhecimento do que não precisou dizer.
O que debate ‘Triste fim’?
A obra de um autor é fruto do espírito de seu tempo, as dores, as angústias e as vivências dos povos e das vidas adas, das sociedades e ideias que romperam e geraram novas e das esperanças e dos entendimentos para o futuro.
A consciência do autor está por trás de sua obra, em correspondência ou refletindo as possibilidades adiante do seu período histórico.
Neste aspecto, o livro se situa em um momento posterior ao estabelecimento de fachada da “República brasileira”, e nos caminhos para o golpe de Estado de Floriano Peixoto sobre o marechal Deodoro da Fonseca.
Faz-se necessário analisar o caráter farsante do dito estabelecimento e proclamação da República brasileira no que condiz ao mantenimento das velhas estruturas de dominação do povo brasileiro, como o monopólio feudal da terra, a dominação estrangeira sobre nossas riquezas e os espúrios tratamentos ao povo preto, neste momento, já falsamente considerado livre da escravidão. Estes três tópicos, por sinal, estão profundamente presentes nas demais obras de Lima Barreto e ganham espaço também em Triste fim de Policarpo Quaresma.
Dentro desse contexto em que se insere o livro, existe um patriota, profundo amante do Brasil e dos “brasis”, um louvador do povo brasileiro, de sua cultura, de seu conhecimento próprio, de seus dizeres, de sua história, um sujeito que cria todas as intrigas para justificar o porquê de tal país merecer ser soberano; isso contraposto às duras reflexões do que o Brasil de fato é. Esse sujeito é Policarpo Quaresma.
Esta contradição movimenta o conteúdo do livro, as razões que levam Policarpo a amar a nação que lhe deu vida são válidas, porém, a imposição dos empecilhos reais lhe faz reprimir sua esperança por um novo Brasil, o tornando ressentido com o amor que por toda a vida tomou corpo em suas ideias.
Para solucionar os problemas candentes do Brasil, Policarpo escreve uma carta pública justificando os motivos que devem levar os brasileiros a transformarem o Tupi como sua língua oficial. Ele explica as razões para tal: retorno às origens, rompimento com a cultura colonial e independência social, valorização das origens sociais do território nacional, dentre outras. Porém, a carta o leva ao desânimo ao perceber que as pessoas o ignoraram ou o satirizaram, taxando-o de louco e outras aporrinhações.
Em seguida, Policarpo escreve uma complexa carta a Floriano Peixoto, explicando os fundamentos do problema agrário no Brasil, sua permanência, suas características monopólicas que retardam o desenvolvimento da nação e desenvolvem sérios problemas sociais, como pobreza, e clientelismo oligárquico e corrupto. Nesta nova carta ele apresenta como solucionar tal problema. Floriano, digamos, ignora-o.
Ao fim, Policarpo se oferece a defender Floriano no contexto da chamada “Revolta da armada”. Ou seja, transforma-se em um soldado para defender seus interesses pela pátria. Policarpo, ao ver o crime de guerra sendo perpetrado sobre seus iguais, desilude-se por completo com os sonhos que almejava para seu país e, no final do livro, há uma sinceridade sobre a própria jornada de desilusão de Lima Barreto quanto ao Brasil.
Ao perceber que sua vida foi entregue em vão, Policarpo Quaresma afirma: “Esta vida é absurda e ilógica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol… (…) Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer… Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; o por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade.”.
Lima em caricatura de seu amigo Hugo Pires
A intelectualidade e o marxismo
Vladimir Ilitch Lenin em Que Fazer?, publicado em 1902, afirma que existe um processo contraditório no surgimento das ideias revolucionárias. Qual a base para se construir um pensamento revolucionário? O movimento revolucionário. Deve existir um acúmulo material para surgir uma teoria revolucionária. Mas para este movimento revolucionário avançar, essa teoria necessita ser sistematizada, sintetizada e retornar ao próprio movimento revolucionário.
Quem faz este papel por conta da particularidade da sociedade de classes e sua divisão entre trabalho manual e intelectual são os intelectuais, que vão, em graus diferentes, conseguir fazer as sínteses das lições apreendidas pelo movimento operário, desde que eles se liguem de antemão a este mesmo movimento operário (não se trata, portanto, de uma intelectualidade em geral, mas sim, da intelectualidade proletária). Porém, este trabalho não finaliza ali. Somente será finalizado quando retorna ao movimento operário e produz uma transformação real na matéria através e pelo movimento real das coisas.
Karl Marx é justamente a figura que, ligando-se ao movimento operário antes de mais nada e tendo uma base material suficientemente desenvolvida sobre a qual se apoiar, foi capaz de captar a história do movimento proletário e as reflexões socialistas, filosóficas e até científicas de então, sistematizou tais reflexões e as devolveu ao movimento para gerar transformação. A transformação que gerou é o que separa Marx de todos os teóricos socialistas, burgueses ou utópicos; foi sua posição que gerou vitórias favoráveis e fez o movimento avançar cada vez mais.
Por isso, entende-se que a linha correta deve ar necessariamente pela linha de massas, pelas demandas e exigências reais das massas do movimento real como se apresenta.
O que isso tem a ver?
O intelectual Lima Barreto é um democrata, que vê o movimento real das coisas, ele sente que há a necessidade de transformação, mas por ele não ter as ferramentas necessárias de unidade com as forças realmente transformadoras da história, que são as massas, fica preso à sua própria ideia. Em certo momento, até mesmo reflete que as massas estão atrasadas quanto ao seu pensamento ou que ele mesmo é um vanguardista (visto que sua posição política em vida foi do anarquismo). Resumindo: se ele tem o reconhecimento da necessidade, não vê transformação real correspondente a esta necessidade e não pode fazer parte dela agindo diretamente através dos meios existentes; o que lhe sobra é olhar a sociedade como este grande monstro, contra o qual jamais irá conseguir lutar sozinho, gerando niilismo e sentimento de esmagamento.
O período de inexistência do Partido Comunista do Brasil à época pode ser um dos influenciadores dessa forma de pensar. A sociedade se divide em classes e estas se organizam em partidos; e nesta era histórica, na qual ele viveu e na qual ainda permanecemos, só quem pode transformar radicalmente a sociedade brasileira, conformando-a enquanto tal, é o proletariado, por nada ter a perder. Como pensar na transformação política da sociedade sem existir a organização de classe que possa, sistematicamente, ir a ela transformando? A única possibilidade que sobra ao grande Lima Barreto é a espontaneidade, por isso suas constantes defesas às greves que aconteciam aqui e ali, ao movimento feminista insurgente, às lutas do povo preto em separado.
Existe um descomo. Na existência desse descomo entre teoria e prática, devém a depressão. Toda vez que existe um descomo entre a realidade material e o pensamento, o resultado se torna o pessimismo. Para se ser otimista enquanto agente no mundo, segundo o pensamento marxista, é necessário o pensamento estar de acordo com o movimento real das coisas.
Por que somos otimistas? Porque vemos no movimento real das coisas as possibilidades reais de sua transformação. Se apenas há o pensamento utópico e não se observa o movimento real das coisas, o resultado é pessimismo com a própria ideia de transformar o mundo.
Por que isso acontece com a intelectualidade? Porque ela está distante das formas de transformação da realidade, pois não se transforma a realidade apenas com o que está na ideia.
O ‘Triste fim’
O que acontece em O Policarpo Quaresma? O personagem tenta transformar a realidade através da ideia, não consegue. Ele tenta transformar a realidade através do estímulo às pessoas que possuem alguma ferramenta para transformar a realidade, não consegue. Então ele tenta transformar a partir dele mesmo, e não consegue, porque sozinho não é possível; então isto o torna deprimido, a ideia dele não condiz com a realidade, ou então “a realidade não está “preparada” para sua ideia, o que redunda no mesmo.
O pensador alemão Hegel, principal referência para Marx, diz que o “racional é o real”. Compreendendo-se de tal forma, como se pode ter uma teoria que na prática mesma da coisa não se comprova? O que de fato é uma teoria, portanto?
Estas ideias de Policarpo Quaresma são a base de sustentação de toda sua vida, por isso, quando elas não se apresentam na realidade, gera um descomo e a depressão toma-lhe o corpo.
O processo ao qual se conformou a intelectualidade dentro da sociedade burguesa é de que esta fique cada vez mais isolada do mundo concreto e que seu debate cada vez mais restrinja-se no campo da lógica. Essa dificuldade de “retornar” ao campo da luta é também dificuldade do ponto de partida. Qual deve ser o ponto de partida de um intelectual? A própria luta. Senão torna-se cada vez mais escolástica, distante do movimento real das coisas. Se Policarpo, assim como Lima Barreto, são democratas de fato, é de seu feitio e desejo que seu pensamento gere algo de importante na vida.
Qual o caminho do intelectual democrata? Unir-se ao movimento real das coisas, unir-se à única força transformadora de fato da realidade, que são as massas. Unir-se, através do seu destacamento de vanguarda, conseguir não somente fazer com que estas sigam suas ideias, mas conformar as suas ideias às necessidades mais pungentes das massas. O intelectual é parte de uma classe, nas palavras do Presidente Mao Tsetung: “não existe um pensamento na sociedade que não esteja marcado com o selo de sua classe”.
A depressão de Lima Barreto e, por consequência, de seu personagem, é de alguém que vê a necessidade, por ser intelectual, realizar o trabalho mental, ver a lógica da história, ele compreende que existe uma necessidade, mas o movimento real das coisas (que é o que importa!) está atrasado quanto ao seu pensamento. Com isso, ele pode apenas ter um triste fim.