No contexto da luta indígena é comum escutar que o inimigo dos povos indígenas é a “sociedade do homem branco”, referindo-se a esta como um bloco monolítico sem contradições. A primeira armadilha que se organiza em torno dessa lógica é a negação da luta de classes. Partindo deste princípio equivocado, os oprimidos dentre os ditos “homens brancos”, como camponeses pequenos e médios ou posseiros, são igualados aos opressores e são tratados como inimigos, particularmente por muitas ONGs (em sua maioria financiadas por agências ligadas ao imperialismo ianque ou outros) e por certos antropólogos em suas abordagens culturalistas1, mesmo que, muitas vezes, estes intelectuais estejam sinceramente engajados na justa e legítima luta pela reafirmação dos direitos dos povos indígenas. 6w5f6y
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Avançando a luta: Munduruku fazem autodefesa de suas terras com armas e flechas
Buscamos ressaltar, por meio deste breve artigo, alguns apontamentos sobre como a teoria marxista pode explicar a organização e sentido das sociedades indígenas, no objetivo de defender o uso desta teoria para elucidar os conflitos na atualidade. Particularmente neste momento, em que o país a por uma profundíssima crise (econômica, política, moral, social, institucional e militar) e uma guerra reacionária que tem como um de seus elementos centrais a questão agrária, colocando entre seus alvos os direitos dos povos indígenas, para servir à expansão territorial e a reestruturação espacial do capitalismo burocrático2 engendrado pelo imperialismo, principalmente ianque, no Brasil.
Marxismo X Culturalismo
A teoria marxista tem sido capaz de desvendar uma série de conflitos e problemas e explicá-los cientificamente. Certamente, é também capaz de revelar as nuances da situação que os povos indígenas enfrentam, resistindo à cruenta opressão imperialista e exploração semifeudal do latifúndio (de velha ou de nova roupagem, este último chamado “agronegócio”), pelo direito ao território. Assim, um dos mais significativos aportes da teoria marxista à luta indígena é sua capacidade de desvendar o caráter das contradições: antagônicas ou não antagônicas3.
A análise do desenvolvimento das contradições no contexto da luta empreendida pelo povo chinês no decorrer da vitoriosa Guerra Popular Prolongada, dirigida pelo Partido Comunista da China, foi magnificamente sistematizada por sua chefatura, o Presidente Mao Tsetung. Em sua aplicação criadora do marxismo-leninismo à realidade chinesa, o Presidente Mao afirmava que existem duas naturezas básicas de contradições: as antagônicas e as não antagônicas. Ou seja, as contradições no seio do povo (não antagônicas) e as contradições entre o povo e os seus inimigos de classe (antagônicas)4.
No caso dos países coloniais e semicoloniais (como é o Brasil), as contradições antagônicas são, por exemplo, aquelas que opõem os interesses dos camponeses pobres ao latifúndio; os da grande burguesia ao proletariado; e os de todo o povo à dominação imperialista. Estas contradições são antagônicas porque, entre estas classes, há interesses inconciliáveis e que, numa situação normal, não podem convergir. Portanto, essas contradições só podem ser resolvidas por meio da violência e da luta irreconciliável. Isto é, por meio de uma revolução, sob a direção do proletariado, por meio de seu Partido revolucionário guiado pela ideologia científica da classe operária, o marxismo-leninismo-maoismo.
Já as contradições não antagônicas são todas aquelas que envolvem diferentes classes populares (isto é, todas as classes que têm contradições antagônicas com a grande burguesia, o latifúndio e o imperialismo) ou entre determinados setores destas classes. Incluem-se proletariado, semiproletariado, pequenos proprietários urbanos (pequena burguesia urbana), camponeses pobres (com pouca ou sem terra), camponeses médios e médios proprietários (burguesia genuinamente nacional). Isto é chave compreender para agarrar todo o desenvolvimento do raciocínio.
O oportunismo e seu corporativismo
As contradições não antagônicas geram tensões e disputas, fruto das contradições de interesses econômicos e políticos e mesmo das diferenças ideológicas inerentes a cada uma destas. Desde os mais remotos tempos (no Império Romano, por exemplo) as classes dominantes reacionárias utilizam-se destas contradições no seio do povo para facilitar a sua dominação. Daí vêm o conhecido adágio “dividir para dominar”. A utilização deste recurso como uma política de Estado foi recorrentemente utilizada pelo nazismo e foi a partir deste exemplo histórico que a sociologia contemporânea cunhou o termo “corporativismo”, ou seja, dividir classes e setores de classe como partes, como membros de um mesmo corpo, controlados pelo aparato estatal.
O imperialismo declarou solenemente a sua “Nova Era” e o “fim da história” após o início de sua ofensiva contrarrevolucionária de caráter geral e convergente com o revisionismo, iniciada na década de 1990, encabeçada pelo USA e hoje em bancarrota5, e com as bênçãos da Igreja Católica. Além disso, também havia ocorrido o desmoronamento do capitalismo de Estado gerenciado pelos dirigentes revisionistas da URSS social-imperialista.
Nesse contexto, os imperialistas centraram forças contra o marxismo por meio, por exemplo, de pesquisas e projetos financiados por eles e de conceitos elaborados pela ONU/Unesco. Com isso, o corporativismo a a ser parte integrante das políticas de Estado em praticamente todos os países coloniais e semicoloniais, o que se generalizou por completo em meados da década de 1990. Não seria exagero afirmar que o Brasil, com a ascensão do projeto de conciliação de classes encetado pela falsa “esquerda” nos gerenciamentos petistas de Luiz Inácio, com os seus programas “Fome Zero” e “Bolsa Família”, foi um verdadeiro laboratório de tais políticas corporativistas.
Exemplos emblemáticos sobre como o imperialismo utiliza essas contradições no seio do povo para tirar proveito, por meio dos seus sucessivos gerenciamentos semicoloniais e com o inestimável apoio de oportunistas eleitoreiros em geral e particularmente dos revisionistas, são os discursos e políticas corporativistas. Tais discursos e políticas são conduzidas no gerenciamento semicolonial com o objetivo de escamotear e tergiversar sobre a natureza de classe das contradições entre o povo brasileiro e o velho Estado burguês-latifundiário.
As ditas “ações afirmativas” são exemplos de práticas corporativistas, pois exploram o legítimo sentimento de indignação diante do racismo contra o povo preto, camuflado, mas imperante em nossa sociedade como fruto do próprio processo histórico que teve na escravidão do período colonial e imperial um de seus mais tenebrosos capítulos. Racismo perpetuado sistematicamente pelas reacionárias classes dominantes, legítimas herdeiras dos “senhores de engenho”, e pelas mãos sanguinolentas das polícias militares que cumprem com esmero a função de modernos “capitães do mato”.
O feminismo burguês e pequeno-burguês com suas teorias pós-modernas de “empoderamento” (conceito cunhado pela ONU) é outro exemplo, pois exploram as contradições e conflitos entre homens e mulheres e aquelas existentes entre as pessoas que relacionam-se afetivamente com outras pessoas do mesmo sexo e por este motivo são alvos de preconceito e mesmo de violências físicas6.
Ambientalismo e luta de classes
O movimento ambientalista incorre no mesmo erro de juntar as contradições não antagônicas e antagônicas, apresentando-as como uma coisa só, não considerando a luta de classes. Ele utiliza sempre um conceito homogeneizante conhecido como “ação antrópica”. Todo um conjunto de cientistas tem repetido de forma acrítica esse termo que nada mais faz do que esconder as relações de dominação (econômicas, políticas e militares). Por acaso o que vem a ser ação antrópica? Todas as ações humanas sobre a natureza? Mas essas ações são tão diversas entre si que chega a ser um absurdo essa extrapolação para gerar uma categoria unificadora. Como o crime ambiental do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana (MG), cometido pelas duas maiores mineradoras do mundo (Vale e BHP), pode compor uma mesma categoria analítica ao lado de um camponês que desmata a beira do rio para retirar o mínimo para a sua subsistência? Mas, para a pseudociência burguesa, essas ações fazem parte de uma mesma categoria analítica, ou seja, são igualmente ações antrópicas, o conteúdo de classe é totalmente suprimido. Claro que, para elaborar e difundir tais conceitos, renomados acadêmicos recebem grandes recursos financeiros e materiais e até mesmo homenagens.
Enquanto isso, tais “cientistas” da moda afirmam que o marxismo foi superado, porque, segundo eles, é “ultraado”, “antiquado”, “obsoleto”. Como se o conhecimento científico fosse como uma espécie de “Fashion Week”. Por acaso a mecânica de Newton foi completamente abandonada depois de Einstein? Não se quer comparar Marx a Newton, não é esse o caso, o exemplo é apenas para demonstrar que cientistas sérios e honestos deveriam, ao menos, reconhecer a importância da teoria científica que se desenvolveu a partir de Marx e Engels. Tais “cientistas humanos” e “cientistas sociais” nada mais fazem do que um “excelente trabalho” dentro da produção pseudocientífica impregnada pela ideologia imperialista. <hr id=”system-reore” />
A questão indígena
Nesse sentido, a contradição antagônica para o movimento indígena não seria com a “sociedade do homem branco”, mas com as classes dominantes no país (grande burguesia e latifúndio) e o imperialismo. Por outro lado, entre os povos indígenas e as classes oprimidas no país não existe uma contradição insolúvel, mas somente contradições no seio do povo, não antagônicas, que devem ser resolvidas por meio da persuasão e do desejo de união. Sendo assim, ao contrário do medo do contato e da ideia romântica do isolamento, o que se precisa é fortalecer a aliança entre a massa de oprimidos do campo: camponeses, indígenas e quilombolas em sua luta comum por terra e território, o que só é possível por meio da Revolução Agrária, sob o lema de “terra para quem nela trabalha!”.
Certamente muitos antropólogos e cientistas humanos contaminados pela ideologia imperialista dominante na academia se levantariam em completa revolta, afirmando que são categorias completamente diferenciadas (matriz econômica e culturais) que não se podem pensar conjuntamente. Para esses “teóricos” dizemos que, na realidade da resistência, na concretude da luta, a cultura e a economia nunca estiveram separadas e que, para além da cultura, estamos pensando na esfera ideológica da superestrutura. Mesmo que em suas matrizes teóricas essas categorias estejam separadas, a realidade da luta de classes demonstra que as alianças e a autonomia são possíveis e necessárias.
Na atual etapa do processo revolucionário no país, a contradição principal, e que é antagônica, é aquela que opõe, por um lado, os camponeses pobres sem terra ou pouca terra, as comunidades remanescentes de quilombolas e os povos indígenas contra o latifúndio, por outro.
Para comprová-la, basta observar como o Estado burguês-latifundiário a por cima da autonomia dos povos indígenas, ainda que se tenha na sua constituição o “direito à autodeterminação”. Utilizando a criminosa e farsante insígnia do “interesse nacional”, invadem os seus territórios indiscriminadamente para construir hidrelétricas, rodovias e mineradoras etc. todas obras em benefício do latifúndio e da grande burguesia subserviente ao imperialismo, principalmente ianque.
Portanto, categorias como “ação antrópica” e “interesse nacional” como o suprassumo da “neutralidade científica” buscam esconder as contradições de classes existentes, mas caem em um vazio, pois, na prática, representam sempre a ideologia imperialista e servem à reprodução dos seus interesses e de sua dominação.
Os povos indígenas são nacionalidades oprimidas dentro do território brasileiro, com línguas e costumes próprios, que vêm sofrendo ataques constantes do imperialismo por meio do velho Estado burguês-latifundiário brasileiro. Cabe-lhes então juntar-se às massas de oprimidos do campo e da cidade, que conformam a imensa maioria do povo brasileiro e unificarem-se em torno da luta por sua verdadeira autonomia que só é possível através da luta pelo Poder.
Como já afirmava Fausto Arruda7, “dado o caráter reacionário do latifúndio e da grande burguesia brasileira é impossível que seu Estado assegure uma verdadeira democracia e uma efetiva independência nacional”, e prossegue: “Somente uma revolução democrática e nacional pavimentada por uma revolução agrária poderá cumprir esta missão, liberando, assim, as forças vivas e autênticas dos povos brasileiros das amarras que a impedem de completar a formação da nação e construir o seu grande futuro como uma autêntica República Popular de Nova Democracia”.
1 O culturalismo é um ramo da antropologia que busca uma descrição da sociedade sob a perspectiva combinada da antropologia e da psicanálise. Com base na observação das sociedades arcaicas, os culturalistas destacam a influência preponderante da cultura na personalidade dos indivíduos.
2 Sobre o capitalismo burocrático ver Conceitos científicos do proletariado, AND 199.
3 Sobre a contradição. Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Pequim, 1975, Tomo I, pág: 525-586.
4 Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo (Mao Tsetung, 1957). Disponível no site serviraopovo.wordpress.com.
5 Revisionismo: Corrente oportunista no movimento operário e popular revolucionário que é hostil ao marxismo e nega a sua essência revolucionária. Porém, sua particularidade é apresentar-se como marxismo. Ver Conceitos científicos do proletariado, AND 203.
6 As correntes filosóficas no movimento feminista. O seguinte texto é obra de Anuradha Gandhy, fundadora do PCI (M-L) e membro do CC do PCI (Maoista) até sua morte. Introdução geral ao Movimento de Mulheres no Ocidente, pela Camarada Janaki (Anuradha Ghandy). Traduzido e publicado novamente em serviraopovo.wordpress.com.
7 ONGs e latifúndio vilipendiam nossa soberania. Fausto Arruda. Ano VI, nº 43, 06/2008.