Crônica: O coração revelador 5g1v5u

Crônica: O coração revelador 5g1v5u

Todo canalha é um santo no espelho. Falo do canalha profissional, daquele que carrega a canalhice como um estandarte. Não confunda com o canalha eventual, que em um momento de fraqueza pode itir: “acho que fui canalha.” Esse ato de itir já pode ser, na verdade, o início de uma redenção. Mas o canalha convicto? Ah, esse não. Por quê?  4g4370

Seria demasiadamente simplista dizer que o canalha é o mal encarnado, que é um mero desonesto, uma besta-fera, uma hiena, um chacal. Não! Ele é uma figura complexa, quase filosófica, digna de uma análise mais profunda. Mais especificamente, devemos recorrer à uma teoria do século XIX, que, paradoxalmente, vamos chamar, por fidedignidade, de nova teoria da alma humana – suas linhas gerais foram traçadas pela primeira vez em uma casa no morro de Santa Teresa, em sala pequena, alumiada a velas, sob uma luz que fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora, como nos conta Machado de Assis.

Jacobina, o principal formulador da teoria, nos diz que o homem, metafisicamente, animicamente, é como uma laranja, com suas duas metades, tendo uma alma interna (esta já velha conhecida) e uma externa. A alma externa é aquilo a que se apega o homem, muitas vezes como à sua própria vida ou, no mínimo, como ao sentido imediato dela, sendo possível morrer (e morrer em vida) ante sua perda, que já em si significa a eliminação da metade da existência. 

O canalha é, como todos nós (que nos pese que seja como todos nós é indiferente à ciência, infelizmente), uma laranja. E, se a teoria está correta, decerto ele é, como o avarento modelo da modernidade, Shylock, o mais apegado possível à sua alma externa, que, por outro lado, é o símbolo de sua mesquinhez interna. 

Sim, o canalha não é o grande indivíduo, nem para o bem e nem para o mal. Sua alma externa não poderá jamais ser imponente como a de um Camões, que jura morrer junto à nação, e nem ele venderá a alma interna à Mefisto para obter, à guisa de alma externa, todo o conhecimento do mundo. Também não é o indivíduo comum e modesto, cuja alma externa é dinâmica e corresponde, no geral, aos estados mutáveis, cotidianos e sensíveis, da experiência. 

O canalha é um obstinado, mas um obstinado pela mesquinhez. A mesquinhez não pode absorver a grandeza e nem dinamizar o efêmero, pois, no essencial, é uma árvore já morta, de pé apenas por falta de suficiente fricção que a derrube; árvore que já não faz quase nenhuma sombra, não tem cor e nem folhas, mas segue ali, se fingindo necessária. 

É através da mesquinhez que o canalha se beatifica a si próprio. Ao por-se frente ao espelho, isto é, frente àqueles que estão sob a influência da canalhice, demonstra sua grandeza apontando para a própria sombra minguante e, cegando o caminho para o bosque com seu tronco morto, promete ser ela a única existente. Mobiliza-os mesmo para defender aquela coisinha retorcida, mirrada.

O canalha, é claro, não se contenta em ser apenas, internamente, um pecador santo, nem vive unicamente da mesquinharia de seus atos. Ele carrega uma dualidade que vai além, que se expande também para fora, refletida no olhar que lança a quem o rodeia. Diante do espelho, seu maior dilema não é se é grande ou insignificante, mas a relação de amor e ódio que tem com o reflexo. Seus bajuladores e enganados, como os escravos de Jacobina, que lhe entoavam canções de louvor e previsões do futuro, são ao mesmo tempo sua salvação e os “espíritos boçais” que ele despreza. Se pudesse, o canalha preferiria ter apenas a si e suas ilusões. Afinal, ninguém jamais será capaz de entender a profundidade de sua santidade ou chegar à raiz de seu sonho decaído, muito menos provar o tutano de seu fruto decomposto.

Mas não adianta ficar nos ares da abstração; a canalhice precisa ser mostrada in situ. E para isso, nada melhor do que as eleições.

No Rio de Janeiro, 1.930.202 não votaram em ninguém, enquanto Eduardo Paes foi eleito com 1.861.856 votos. Em São Paulo, o total de votos nulos, brancos e abstenções esteve perto da soma dos votos dos dois candidatos que irão para o segundo turno, 3.577.266 para o boicote e 3.577.266 para Nunes e Boulos. Em Belo Horizonte, o número de abstenções sozinho consegue ser maior que a votação de Bruno Engler do PL, enquanto os número do boicote em geral (725.190) estão próximos da somatória da votação dos dois candidato que irão ao segundo turno (Engler e Fuad Noman), representando 57,19% em comparação com os votos válidos. 

Mesmo onde a situação é ligeiramente diferente, a coisa segue um padrão. O  total de votos nulos, brancos e de abstenções na Bahia (640.582 votos) é maior do que os votos de todos os candidatos, exceto Bruno Reis, do União, que recebeu 1.045.690 votos. Em Fortaleza, o boicote levou o terceiro lugar, enquanto André Fernandes, do PL, saiu em vantagem para o segundo turno contra Evandro Leitão, do PT. Em Manaus, o boicote ficou em segundo, sendo forte competição para David Almeida, do Avante, e Alberto Neto, do PL, no segundo turno.

Poderia estar mais que demonstrado que, em primeiro lugar, o povo não crê nas eleições, nos “processos democráticos” do velho Estado de forma geral, e, em segundo lugar, que a desmoralização dos partidos desta autoproclamada “esquerda” eleitoreira já chegou a tais níveis que nem onde houve vitória da mesma nas eleições presidenciais de 2022 há agora apoio aos candidatos do suposto presidente, falência escancarada da “conciliação”, que se expressa ainda mais claramente no verdadeiro estado de guerra que existe no campo. A qualquer um que pretenda vanguardear as massas, isto seria o mínimo a ser percebido, descoberto. 

Mas o canalha, canalha vanguardista “revolucionário”, que é uma categoria típica de canalha, não vê desta forma. Decerto ele conhece a teoria e mesmo dá palestras (ou grava vídeos, são os novos tempos) sobre o caráter do Estado; decerto cita com cupidez a Marx ou Lênin; talvez mesmo ita que as eleições reacionárias são instrumento de enganação, arma para continuar a opressão, se bem que no geral submetam este reconhecimento ao da desigualdade de fundos partidários, tempo de TV ou o que o valha. O que não poderia itir é que, acima destes seus profundos conhecimentos, se erguessem os fatos e o rumo daquela revolução que, também, conhece tanto e tão minuciosamente que lhe custa mesmo explicar aos “espíritos boçais”, alguns dos quais, como também os escravos de Jacobina, insistem em o abandonar.

Não, o canalha “revolucionário” deve se agarrar à sua alma externa, aos seus rapapés, convites para este e aquele evento acadêmico, aos carguinhos, quando muito, e ao magro fundo partidário, que já é alguma coisa. E se agarra, tão sôfrego quanto uma hiena se atraca com a carniça, tão devoto quanto Judas na última ceia. Quando lhe dão a palavra, ele explica, de forma erudita: 

“Escutem com atenção, pois não repetirei! Sim, nossa posição é vergonhosa: não conseguimos votos suficientes para encher um condomínio em São Paulo. Porém, alguns se achegaram, buscando uma tímida esperança e libertação do sol escorchante, nessa nossa tíbia sombra que é também a única. E só isso já é algo grandioso! Trabalhem mais! Trabalhem melhor! Quem sabe, com suas energias, em algum dia futuro, consigamos uma secretaria! Agora, aguardemos dois anos em nossos escritórios – e, quem não tiver um, que o construa!”

Assim falou o canalha, e, ao olhar para o espelho e ver que parte de sua imagem o aplaudia com fervor, enquanto a outra, mesmo com alguma reticência, aplaudia também, ele percebeu que suas palavras eram boas. Mas a ganância, ainda insaciada, pediu mais: um espelho maior, digno de refletir sua grandiosidade – um espelho, talvez, como o do canalha mais bem-sucedido do país. 

Mas hão de me perguntar, por fins científicos, alguns: o canalha dorme? É uma questão válida. Creio que vai de canalha para canalha; alguns dormem, outros não. Não se trata de ausência de razão, mas sim de circunstâncias que se diversificam. Em algum momento, todo canalha experimenta seu “coração revelador”, pulsando sob as tábuas que encerram os restos da honestidade, bem como o culpado. Esse som, estrondoso e vertiginoso, é, contudo, uma sinfonia apenas percebida por ele.  

Há meios de calar o “coração revelador” ou ao menos amortecer seu estrépito. E é aqui que se diferencia do culpado o canalha. O culpado, se não quer ser canalha, exclama: “Eu matei! Eu matei! O coração que bate é do homem que matei!” e até mesmo se deixa algemar. O canalha responde de forma canalha. O triunfo do canalha reside na sua capacidade de desviar o olhar, de transformar a culpa em um eco distante. Por outras palavras, repetindo de forma apócrifa Kafka, uma vez que a canalhice se instala em sua essência, o canalha não precisa mais acreditar nela. O demônio maior chamará para si os menores que o servem. Assim, se por algum motivo não dorme, às vezes é mesmo porque não foi canalha o suficiente. 

Vejamos a história do canalha solidário. Sua canalhice consistia em ser solidário, canalhamente solidário, fundador do Comitê dos Canalhas Solidários, cujo objetivo maior era defender a permanência de alguns moradores de rua em um muquifo que, se bem que fosse melhor que a calçada, não o era por muito. Por toda sua solidariedade, o Comitê cobrava bem pouco, quase nada, uma ninharia, um pequeno aluguel, e até então tudo ia bem para nosso herói, o mais engajado entre todos, pois seu único desejo era ser um canalha solidário e sua alma externa era mais o reconhecimento como tal, que lhe possibilitava certa distinção entre os demais canalhas, que lhe permitia escrever livros e formar opiniões. Até que um dia o Comitê dos Canalhas Anti-Solidariedade o chamou para uma reunião com a intenção de dar cabo desse absurdo que era ajudar gente sem nada – mesmo cobrando! O canalha solidário viu que os aposentos dos membros daquele Comitê eram muito mais vultosos, que comiam melhor etc. Disseram-lhe: “Se quiser crescer na vida e chegar ao nosso patamar só precisa de uma coisa: deixar de ser solidário. Mande essa gente embora daí!”. Mas isso não podia, pois lhe assaltaria a consciência, pois seu traço distintivo era precisamente este, pois, sem isso, que livros escreveria? Agarrou-se a sua alma externa, protegeu a metade de sua existência. Na manhã seguinte, o canalha solidário escreve uma carta aberta ao povo. Declara: “Eu sou solidário! Eu sou o homem mais solidário do mundo!”, e continua: “Mas é do interesse de todos que algumas coisas mudem”. Finalmente pode dormir de novo. A consciência cindida se fez una. A verdadeira solidariedade, percebeu, consiste em ser, plenamente, canalha.

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