Crônica: A anti-ciência 5a64m

Querem usar a nossa ainda jovem, tão jovem, linguística, para desenvolver uma nova ciência, que é, na verdade, a anti-ciência
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Crônica: A anti-ciência 5a64m

Querem usar a nossa ainda jovem, tão jovem, linguística, para desenvolver uma nova ciência, que é, na verdade, a anti-ciência

Tenho enorme apreço pela linguística. Que grandes descobertas sobre o homem ela nos trouxe ou confirmou! A vertente cognitiva, por exemplo, com Michael Tomasello, deu conta de provar experimentalmente que o trabalho, a intencionalidade compartilhada no uso de ferramentas por seres que se entendem como co-específicos, precede a formação de todo tipo de convenções culturais, mediadas, por sua vez, por um desenvolvimento único da espécie: a capacidade para a comunicação articulada e complexa, de forma mais geral para a aprendizagem social, em si condicionada inicialmente pelo desenvolvimento biológico humano, mas que consegue, por outro lado, nos impulsionar para além dos limites de uma evolução puramente biológica, agindo como uma catraca que previne a destruição absoluta daqueles conhecimentos já socializados, situação comum para outros animais, mesmo os mais inteligentes, que no máximo conseguem reproduzir mimeticamente alguns usos de ferramentas grosseiras. Este, como aquele desenvolvimento teórico muito similar de Engels já em 1876, pode ser considerado um grande salto que complementa a teoria das espécies de Darwin, nos comprovando que, de fato, “o trabalho criou o próprio homem”.  e3160

Faço essa introdução apenas para explicar o quanto aprecio o estudo científico da linguagem e o quanto ele pode ser fértil em descobertas. O problema, porém, não pode ser escondido.

O fato é que, como diz a música, assaltaram a gramática. Mais especificamente, assaltaram a etimologia, a semântica e querem se meter até com a pobre da morfologia e da sintaxe. Querem usar a nossa ainda jovem, tão jovem, linguística, para desenvolver uma nova ciência, que é, na verdade, a anti-ciência, e tudo isso por motivos tão velhos quanto a própria infância da ciência, das primeiras tentativas de sistematizar o conhecimento, ou mais velhos ainda, da época dos mitos!

Me explico e já peço perdão pelo rompante, pelo momento emocional. A língua, especialmente a portuguesa, me acompanha desde a infância. 

O caso é simples: as palavras não são as coisas, senão que as convencionam linguisticamente, dizendo de forma grosseira. Mas, para a anti-ciência, as coisas não am de palavras. Assim, hoje, quando se diz “carro”, o carro não é um carro, mas sim há de se definir que a palavra carro advém da latinização de “kers”, do proto-indo-europeu, que significava “correr”, que, por sua vez, se transformou novamente nas línguas portuguesa, sa e inglesa, de tal forma que é ambíguo o que realmente seria um carro sem que nos atentemos a isto. Antes que nos dêmos conta, eis que um corredor solitário no aterro do Flamengo é confundido com um táxi, os bizantinos estão invadindo o país e os espanhóis andam em máquinas completamente diversas, uma vez que o “coche” deriva do “kocsi” húngaro.

Fenômenos comuns, como o uso de hiperônimos, se insuflam de significados ocultos, secretos, íveis apenas pela anti-ciência, também. Generalizar qualquer grupo misto se torna um problema, de tal forma que talvez algum dia desses tenhamos de abandonar a economia linguística completamente e começar a chamar a todo e cada um pelo nome (e sobrenome!) em toda e qualquer situação. 

Nossa língua específica, na qual a sintaxe exige a determinação do sujeito em grande parte das orações com verbos pessoais, parece à anti-ciência um acinte. Seriam mesmo capazes dos maiores solecismos apenas para se comprovarem corretos; mas, como isto impediria a compreensão e, desta forma, não poderiam felicitar-se a si próprios com seus discursos fatigantes, seguem sonhando com a anglofonização geral do português, projeto apressado pela Faria Lima.

As desinências, humildes, breves e assustadas, encontram-se em risco e se escondem da anti-ciência, que as quer abolir. “É proibido flexionar!”, dizem.

Quando não há muito o que dizer, inventam. Quando é preciso contradizer-se, contradizem-se. Nada há nisso de ruim, pois ser a anti-ciência consiste em não seguir métodos e nem critérios, afinal. Assim, o “criado-mudo” é um problema maior que a violência policial contra os pretos favelados em alguns momentos. Em outros, o fato de dizermos “os ossos” (advindo de ossum) ou “todos”, como resquício de neutralidade latina, marcada pelo feminino gramatical em diversos casos, é suficiente comprovação de que a língua é, por si só, uma superestrutura maligna, uma “ordem simbólica”, nos dizeres lacanianos, opressiva. 

Que importa que uma miríade de processos tenham gestado essa resultante, que inclusive diverge de ramo a ramo nesta grande árvore que são as línguas românicas? Não, em nada importa que o desenvolvimento do latim vulgar tenha feito cair, de todo, e por razões de economia, o terceiro gênero (que é gramatical, e apenas gramatical, que não cumpre qualquer função mesmo na interpretação da realidade e muito menos em sua conformação!), absorvido em desinências convencionalmente chamadas de “masculino” e “feminino”. Em nada importa que algumas destas formas caíram precisamente pelo uso do singular feminino como plural neutro causar enorme confusão. Não, meus queridos falantes do belíssimo e cantarolante português, o fato é que a anti-ciência decretou: há de ser abolida a verdade, histórica ou de qualquer ordem! A verdade é demasiadamente real! A “ordem simbólica”, cujos significados ocultos só nós podemos ar, é tudo!

Sua avidez de sangue é tão grande, que talvez seja melhor para nós silenciar completamente. De fato, este é o desejo recôndito dos anti-cientistas: que todos se calem, para que eles apenas tenham de ouvir o eco de sua própria voz naquela velha caverna de Platão, para a qual ninguém ou quase ninguém parece aceitar convite, imbecis e atados a convenção do real que são. O real é apenas uma sombra, não sabem? Por extensão, a verdade só será encontrada, verdadeiramente, no metafísico, na crítica crítica, e nem mesmo Hegel o compreendeu, pois não consiste a nossa busca em chegar ao conceito, mas em rejeitar, completamente, a conceituação, assim chegando ao não-conceito da anti-ciência! 

Alguns dos “intelectuais” de nosso tempo chamam este novo o na grande trajetória do idealismo, que tem por objetivo final conduzir-nos de volta aos tempos em que fazer fogo era uma mágica incompreensível, de “giro linguístico”. O inimigo eleito, hoje, para alguns, é a “gramática normativa”, a fonte do mal do século: falar de maneira compreensível. Digo eleito pois não é o inimigo de fato. A língua jamais se submeteu no geral e no essencial à uma normatividade rígida, sempre foi demasiado viva para isso. O inimigo real, assim como a coisa que é primeiramente palavra, não existe no plano humano – nem mesmo o Adão bíblico nomeou sem antes a matéria estar em sua frente. Mas, se ele existisse, só poderia ser as massas, que, no fim das contas, pelo uso contínuo e sempre novo através dos séculos desta nossa grandiosa faculdade da linguagem articulada, criou a gramática verdadeira, isto é, aquela do uso, a qual não se encontra e nem poderia ser transformada ou estancada por prescrição de qualquer ordem. 

No fim das contas, o problema, como o do fogo, é só que essa grandiosa descoberta não saiu das cabecinhas dos próprios anti-cientistas, que queriam ser mais Deus que Adão, neste sentido. Se fossem eles a impor as normas, ou as anti-normas, tudo estaria bem; se fossem eles o Marquês de Pombal proibindo a língua geral (apesar do sucesso histórico desta tentativa ter sido na prática nulificado em grande parte, como nos comprovam as frutas tropicais), nada haveria de errado; se a anti-norma fosse a norma e se a palavra fizesse as coisas, então a anti-ciência seria também a ciência. 

Não é à toa que o primeiro versículo do evangelho dos anti-cientistas diz:

“Em verdade, em verdade vos digo: a gramática normativa é um vilão. Viva a gramática anti-normativa!”

E segue:

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Dom Quixote, ao investir contra os moinhos, via gigantes. Estava certo de que travava uma batalha justa contra inimigos ferozes, quando, na verdade, enfrentava apenas engrenagens silenciosas, movidas pelo vento, indiferentes à sua fúria. Mais ingrato ainda foi o papel de Sancho Pança, a quem faltaram forças para dizer, preso àquele espetáculo como se encontrava: “Deixe o vento ventar, senhor! Deixe o moinho moinhar”.

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