Há quase 100 anos, em 1924-26, o Estado semifeudal e semicolonial brasileiro perpetrava um crime de grande repercussão na época e depois quase esquecido: o confinamento de centenas de presos políticos em Clevelândia do Norte, distrito de Oiapoque (AP), “a síntese da brutalidade, da incompetência e do autoritarismo do governo republicano brasileiro”, na definição do historiador Edson Machado de Brito em sua dissertação Do sentido aos significados do presídio de Clevelândia do Norte: repressão, resistência e a disputa política no debate da imprensa. 3f1n57
Eram operários que desenvolviam atividades sindicais ou militares de baixa patente que haviam tomado parte de sublevações antioligárquicas como a de 1924, em São Paulo. Como para justificar a existência daquela colônia penal insalubre e isolada, deportaram-se também alguns delinquentes, a maioria de pouca monta; e também pessoas sem qualquer participação política ou delitiva, inclusive deficientes mentais e menores de idade, detidas a esmo durante razias da polícia carioca.
Bandidos violentos, também havia: “protegidos pelas autoridades, (…) receberam carta branca, desde o percurso de chegada nos navios, para imporem brutalmente sua ordem contra os
presos que fizessem qualquer tipo de reclamação” e, “sob vista grossa da istração, tinham livre trânsito na vila e andavam sempre em companhia de soldados do Exército, oprimindo os presos mais fracos”, como narra o historiador Carlo Romani no artigo Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920.
SOB O SOL FORTE, EM MEIO À SELVA
Esse era o modus operandi da República Velha: para o Acre, em trabalhos forçados nos seringais, já haviam sido deportadas umas 1.400 pessoas por ocasião da Revolta da Vacina (1904) e mais 400 quando da Revolta da Chibata (1910). Como em Clevelândia, nem todas haviam sido sentenciadas ou sequer processadas. No governo de Artur Bernardes, sob estado de sítio, a deportação para a Amazônia – com ou sem sentença ou sequer acusação formal – de lutadores do povo junto a criminosos ou pessoas assim arbitrariamente rotuladas se ampliou e sistematizou.
Concebida e inaugurada, em 1922, como colônia agrícola para adensar demograficamente a Amazônia e contornar os efeitos mais agudos dos monopólios da terra e da água no Ceará – de modo a evitar seu colapso – , Clevelândia foi transformada, a partir de 1924 em prisão e campo de extermínio. Dos 946 presos registrados (ou seja, sem contar os degredados clandestinamente), 491, “corroídos pelas feridas ou pela febre palustre, pelo beribéri, iam perecendo aos magotes. Um assassínio premeditado e espantoso!”, escreveu Everardo Dias no valioso livro História das lutas sociais no Brasil. Outros 262 fugiram, através da mata, para a Guiana sa, muitos perecendo no intuito. “A floresta era o grande muro dessa prisão sufocante” – diz Domingos Meireles em outro livro importante: As Noites das Grandes Fogueiras.
Num país onde o regime carcerário comum esteve sempre, na prática, muito aquém do tolerável quanto ao respeito à integridade física e mental dos presos, um campo de prisioneiros concebido para ser pior que o habitual precisa ser tétrico. E Clevelândia era, como mostram tais números e os relatos de sobreviventes publicados ainda na década de 1920 – em geral, nos jornais O Combate, A Plebe e A Nação.
O QUE OCULTA O EXÉRCITO?
Arquivos da imprensa da época e cartas dos presos têm sido as únicas fontes primárias dos historiadores que se dedicam ao assunto. Isto não quer dizer que não exista outra: Machado de Brito assinala, em sua dissertação, que “o exército mantém um arquivo fechado em Clevelândia, onde, ao que parece, são guardados documentos (…) sobre o presídio, no entanto não estão íveis para consulta. O exército não nega a existência do arquivo, apenas afirma que está fechado.”
Toda a região de Clevelândia, em verdade, permanece sob controle militar. Segundo esse historiador, suas visitas à área e tentativas de diálogo com os habitantes civis dependiam de permissão do Exército e eram acompanhadas de perto por um soldado que portava um fuzil.
Essa intimidação e esse ocultamento reforçam a legitimidade da pergunta sobre o que contêm tais arquivos, assim como tantos outros que as Forças Armadas mantêm iníveis ao público sem justificativa plausível relacionada à defesa nacional. E tornam provável que parte importante da resposta sejam atrocidades cometidas pela instituição – inclusive contra seus próprios membros que haviam aderido a causas democráticas, nacionais e populares, se rebelado contra o falido sistema oligárquico-imperialista e desconhecido a autoridade do caquético e corrompido generalato que fazia parte de sua estrutura de sustentação nos anos 20 (do século ado…).
PRISÕES DE HOJE
Nos albores deste século, em meio e como sintoma de outra crise geral, o isolamento geográfico de penitenciárias voltou ao repertório do Estado brasileiro – não internando presos no meio da selva, mas deslocando-os para milhares de quilômetros de distância de suas famílias e advogados. Essa é a concepção subjacente aos presídios federais de Porto Velho (RO), Mossoró (RN), Catanduvas (PR), Campo Grande (MS) e Brasília (DF), nos quais ao muro da distância se somam os de concreto.
Para justificar a existência deles, o Estado usa o pretexto de que serviriam para membros (sobretudo líderes) de “facções”, imprecisa categoria incorporada ao léxico policial, jornalístico e marginal nestes anos. Como no caso de Clevelândia, a realidade desmente isso.
Há, nessas penitenciárias, alguns gerentes (nunca grandes acionistas) de grupos como o PCC e o Comando Vermelho. Quem, no entanto, mais tempo ou, até hoje, nelas e no infame (RDD (regime disciplinar diferenciado, ver AND 31 e 206) foi o chileno Maurício Hernández Norambuena, que não fazia parte de qualquer desses bandos nem possuía vínculo algum no Brasil antes de ir para a cadeia. O que levou o Estado brasileiro a dispensar-lhe esse tratamento tão cruel quanto ilegal não foi sequer o delito que cometeu em território nacional, mas sua vida de luta contra o regime de Pinochet e sua continuidade civil em seu país.
Até há, hoje, no Brasil, gente cujo perfil delitivo, caracterizado por emaranhar favores, influências e relações com a estrutura estatal, justificaria a existência de presídios federais de segurança máxima distantes do local onde têm raízes, de modo a evitar que corrompam, intimidem ou atentem contra servidores públicos ou testemunhas: os membros das máfias policiais e paramilitares (mal chamadas “milícias”) que campeiam sobretudo no Rio ou, vinculadas ao latifúndio, em Rondônia. Mas esses, se chegam a ser presos, vão para colônias de férias como a que havia em Benfica e sua congênere de Niterói – ou, quando muito, para Bangu. Até mesmo quando matam autoridades do mesmo Estado, como a juíza Patrícia Accioly, ou crianças como Henry Borel.
Imagem de destaque: Jornal da época registra sinistro acontecimento. Foto: Reprodução