A aprovação por maioria folgada do Projeto de Lei 2159/2021, popularmente conhecido como PL da Devastação, reflete uma ampla concertação política entre os representantes do latifúndio agro-exportador, mineradoras e incorporadores imobiliários em ligação direta com o governo Lula. Assim, até os mirrados votos contrários que vieram majoritariamente de senadores do PT não aram de uma encenação para encobrir o papel jogado pelo presidente Lula e o ministro da Casa Civil, o ex-governador da Bahia, Rui Costa. 4c45y
Antes de entrar nos detalhes mais sórdidos do PL da Devastação, é preciso reconhecer que a atual legislação que rege o licenciamento ambiental no Brasil realmente precisava de ajustes para se tornar mais eficaz, mas esses efeitos não foram corrigidos pelo PL da Devastação, mas sim exponencializados. Um dos problemas da legislação atual é que ela se baseia no conceito do “poluidor paga”. Assim, o interessado em iniciar um projeto potencialmente poluidor é quem, pela legislação atual, é responsável por pagar a realização dos estudos de impacto ambiental, bem como viabilizar a presença dos atingidos pelo empreendimento a ser avaliado em audiências públicas. Com isso, o poluidor fica com a faca e queijo na mão para conduzir o processo ao seu bel prazer. Além disso, um mecanismo de responsabilização por impactos futuros, as chamadas condicionantes ambientais, geralmente são escritas de forma genérica, quando não são expurgadas das licenças quando o empreendimento começa a operar.
Há ainda que se lembrar de que o alegado atraso no processamento dos pedidos de licença ambiental tem mais a ver com o sucateamento das agências ambientais e com a pobreza dos estudos entregues do que com a legislação em si. O próprio caso da licença ambiental para a exploração de petróleo e gás na foz do Amazonas tem mais a ver com a incompetência técnica da Petrobras do que com a má vontade dos técnicos do IBAMA que estão conduzindo a análise técnica dos estudos entregues pela empresa.
Não se pode deixar de dizer que, desde seu primeiro mandato, o presidente Lula vem se mostrando um adversário da legislação ambiental. Com uma visão de desenvolvimento que mescla tinturas de getulismo e anos JK, Lula já deixou claro que compactua da visão de que as licenças ambientais atrapalham o processo de desenvolvimento econômico. Lula deixou isso explícito ao classificar o debate sobre as cobranças por mais rigor técnico na avaliação do pedido de licença ambiental feito pela Petrobras para iniciar a prospecção de petróleo na foz do Amazonas como “lenga do IBAMA”.
Por isso, é que ninguém deve se surpreender com as notícias de que o governo Lula agiu para facilitar a tramitação e aprovação do PL da Devastação. Na verdade, os parlamentares do PT e da sua base aliada já haviam facilitado a tramitação de outra lei antiambiental, o que facilitou a produção e venda de agrotóxicos no Brasil, o PL do Veneno. Como agora, também no debate do PL do Veneno, os parlamentares do PT apenas fizeram um simulacro de oposição, deixando ar mudanças que fragilizaram profundamente uma legislação que também tinha defeitos, mas que foi substituída por algo muito pior.
Alguém poderia se perguntar qual é o interesse em implodir o licenciamento ambiental no Brasil. A explicação mais fácil é que Lula possui vários projetos estruturantes de alto impacto socioambiental, e precisava do enfraquecimento da lei do licenciamento para fazer andar coisas como a pavimentação da BR-319, a construção da hidrovia do Pantanal, ou ainda a viabilização da EF-170, também conhecida como Ferrogrão, que visa conectar a região produtora de grãos do Centro-Oeste ao porto de Miritituba, no Pará. Com cerca de 900 km de extensão, a Ferrogrão tem como objetivo principal facilitar o escoamento da produção agrícola da região para exportação, ando pela Bacia Amazônica.
Ainda que todas essas evidências de interesse estejam corretas, o que me parece estar realmente em jogo é o aumento da subordinação da economia brasileira ao atrelar a maioria desses projetos ao atendimento de interesses comerciais, principalmente com a China, principal compradora de commodities agrícolas e minerais. Para o presidente Lula, parece ser lógico que o Brasil sirva como um gigantesco entreposto de commodities, visto que no horizonte geopolítico não se antevê alternativa para salvaguardar seus próprios interesses e dos segmentos econômicos que ele considera viáveis, qual seja, o latifúndio agro-exportador e as mineradoras.
Por isso, Lula não tem hesitado em fritar Marina Silva e deixá-la como uma espécie de vaca sacrificial que se abate em nome de um bem maior. As cenas grotescas que ocorreram no Senado Federal quando a ministra do Meio Ambiente foi exposta a algo semelhante a um pelotão de fuzilamento só se explicam pela opção feita pela ampliação da devastação ambiental no Brasil, que se justifica pela surrada tese de que os pobres vão viver melhor se determinados projetos vingarem. Essa falácia da devastação em nome do crescimento é repetida desde que Delfim Netto soltou a máxima do “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. E a cada ano, vemos o bolo crescer para os mesmos de sempre, enquanto a maioria recebe, quando muito, migalhas que não compensam a piora das suas condições de vida. Quem for até Altamira e ver o que aconteceu com a instalação de Belo Monte entenderá perfeitamente do que estou falando.
Agora que está havendo repercussão pública negativa contra o presidente Lula, o PT ensaia um discurso de oposição, mas isto não a de uma encenação barata. Na verdade, o que está se fazendo é jogar uma cortina de fumaça para fazer com que a boiada termine de ar na Câmara de Deputados, que deve concluir a tramitação do PL da Devastação. Qualquer entrevero que acontecer será uma repetição fajuta da encenação de combate pugilístico encenado pelo ex-BBB Kleber BamBan e o ex-campeão de boxe Acelino “Popó Freitas”. Afinal, o jogo combinado é claro: o PT finge que se opõe à devastação e a extrema-direita finge que acredita na oposição do PT. Mas os dois lados sabem bem que tudo não a de fingimento.
Finalmente, que ninguém se engane. A implosão do licenciamento ambiental que o PL da Devastação incorpora terá efeitos devastadores no Brasil, sendo que os ônus socioambientais recairão sobre os mais pobres e politicamente marginalizados, a começar pelos povos indígenas e comunidades quilombolas. Contraditoriamente, o que vem por aí deverá causar um afastamento definitivo de segmentos sociais importantes que ainda acreditam que Lula e o PT podem oferecer um projeto político que combine proteção ambiental com a devida e necessária distribuição das riquezas nacionais.
Marcos Pedlowski é professor do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Esse texto expressa a opinião do autor.