Relatos de Juan Nadies (8): O suicídio do oficial obstetra e genocida Ricardo Lederer, meu pai, nos foi como um ato de JUSTIÇA POPULAR 5p2j3n

"Se não há Justiça burguesa - que façamos com que esses tipos nunca mais possam dormir tranquilos, que não possam viver seguros, essas são as nossas vitórias."

Relatos de Juan Nadies (8): O suicídio do oficial obstetra e genocida Ricardo Lederer, meu pai, nos foi como um ato de JUSTIÇA POPULAR 5p2j3n

"Se não há Justiça burguesa - que façamos com que esses tipos nunca mais possam dormir tranquilos, que não possam viver seguros, essas são as nossas vitórias."

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O tráfego dos sonhos 166d4o

Há um mosaico de sonhos que se repete infinitas vezes desde a infância povoada por vultos e sombras de Erika Lederer – espécie de fabularia extenuada que vem e se vai, que vai e retorna, o torrão de imagens se esparramando por todos os buracos da cabeça, penetrando-a, inclemente e inevitável, como se lhe sacudisse os cabelos desgrenhados, os dedos em meio aos cachos soltos entre o puxão e a carícia, os olhos de Erika como painéis retráteis, a pupila dilatada na inscrição da dor, as pálpebras tiquetaqueando convulsas, a palavra que falta, que não chega em grito de socorro, o sonho é composto de curvas, ele dribla obstáculos, o sonho atravessa baias, Erika Lederer está acuada, frágil, nove ou dez anos; o que há é um de mãos que lançam e repuxam, apenas mãos e um nada de corpo atrás – mãos que jogam a frente e acolhem o regresso miúdo da criança recolhida, pé ante pé, os olhos aturdidos em espreita, o que será divisa a criança que se volta para trás, o que será ela percebe, do que será ela se desvia, Erika mergulhada na fenda da palavra suspensa, o mandato paterno regendo os pontos cardiais, a casa o quarto o corpo tolhidos ao limite, Erika padece da falta de ar, os pulmões molhados, exaustos, os brônquios de náufrago, inchados, condenados de todo e de antemão, a tosse copiosa compulsiva, o pescoço pendendo à procura do fôlego que resta, e o sonho se estica, o sonho de oito pernas e tentáculos, uma teia travestida é o que lança o sonho, e eis que o pesadelo se encopa como se fora mãos em pinça a um toque preciso, a cirurgia montada na sala, o parto prematuro, as pernas estão afastadas e suspensas, do outro lado da padiola um tinir de ferros, máscaras curvadas sobre a mesa, um traço de iodo, o chumaço de algodão, as mãos com espátulas que abrem caminhos, que afundam na pele solta, os acúmulos de uma fome que não a, Erika tomada em bulimia – agora seus gestos se confundem com garras que ajuntam comida, o sonho se desloca, se transfigura, as garras arrastam pedaços de carne em direção a boca onde a palavra se guarda1, Erika parece enfurnar alimentos como se preenchesse as lacunas deixadas pelo verbo que não avança, o pai lhe embala o sono, lhe empurra o balanço, no entorno é o parque, a praça, o jardim de infantes, Ricardo ensaia um sorriso largo e esparramado, Ricardo tem as mãos em punho cerrado travestidas em soco inglês2, ele avança em fúria e fogo, os dedos longos manipulam a pele branca em demasia, Erika está ao balanço, Erika está dormida, deitada num colchão roto, as mãos se lhe chegam como se a esticasse em gancho para fora da cama, os braços de Erika incólumes, as pernas imprimindo alguma resistência, ainda, pouca, quase nada, e o susto e o sonho num crescendo3, o terror se achegando em assalto ao corpo, sem duração ou amento  como se fora uma lanterna mágica que acende e apaga, indo e vindo, o balanço de tábuas de madeira brancas, o lençol rasgado do repuxo, num lapso, a fratura, o hiato, o sequestro, o desaparecido4. Onde que Erika aí? Ela ousa uma palavra extemporânea: Já mataste? Uma frase, uma interpelação que vai ganhando força e intensidade: Já mataste? Já arrebentaste alguém? Uma rajada, um tiro seco, um balaço na têmpora? Já mataste">5 3s603i

Relatos de Juan Nadies (7) – A Nova Democracia
“Julio Reibaldi, meu pai, oficial de inteligência do exército argentino, manejava informações de sequestro e desaparecimento de pessoas em toda América Latina…”
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Erika está equilibrada em pé ante pé, os nove anos lhe serão salvo conduto a quê? E a voz se remonta, voz de criança, voz entre fôlego e repuxo, o ar tece os contornos da frase definitiva e sem retorno, frase que desprega, que desamarra, que desilude, frase que cinde, que corta as pontas juntadas da amarração, você matou alguém? Os nove anos cabem dentro do fraseado como a um invólucro? Haveria uma resposta que embalasse o berço, que embalançasse o pêndulo das horas, Erika está aos saltos, de golpe os degraus em pulo, ela sobe, ela sobe, ela está subindo, para onde irá Erika? Os os bailarinos resistirão à coreografia da resposta, Erika ousa braçadas em borboleta, metade do tronco se erige para fora da água – um respiro, dois respiros, Erika mergulha aos longes, a asma dilui-se, os ombros aguentarão o que lhe virá, sim, o pai já matou, sim o pai já esteve aí às mortes por encomenda, aos assaltos da patota, ao atacado numerário, frio, imensamente frio, gélido e calculista em face ao desespero e pranto do outro, o pai já esteve aí, Ricardo Lederer manipulou as peças ao tabuleiro das ações, o cálculo à justa medida, o corte dos tecidos em retração, a tesoura afastando as gorduras, o levante da pele, a sutura sem anestesia, a intromissão das mãos escandindo as etapas da dor, há espaços a que uma criança emerja daí? Erika é tomada em silêncio e vômitos em cascata, forquilha da palavra purulenta, um dique de contenção e o espasmo o surto a saúde saindo pelo corpo em rechaço6.

Ricardo saca o par de óculos, debruça os joelhos ao assoalho, Erika lhe sobe às costas, um o dois os, o trote é manso e cuidadoso, Erika parece caber nos olhos em festa, o sorriso de criança é do tamanho do mundo – ela sorri através dos olhos, os sulcos leves na maçã do rosto de miúda, ela avança, o sonho regressa, um saco preto de corpos espalhados pelo recinto, já não é a praça, já não é o parque, a folhagem das árvores não está, o amarelo da camisa de manga não há, tudo agora já é nada, Erika está ao fatiado de pesadelo, talvez Erika desperte como em queda livre, do alto distante, do alto em desequilíbrio, os membros entorpecidos, o corpo anestesiado, ela está dormitando, está em queda livre, como se despencasse do voo, como se de Erika apenas pudéssemos falar do pouso abrupto num espocar seco e solitário entre as águas do Rio da Prata. Distante, longínqua, solitária, estrangeira7.

Mas nunca é que param as imagens – a catapulta, o sonho volta, ele lhe voltou a totalidade do tempo – é da vida o de que se trata, ele volta, não tarda, ressurge tudo e se desfaz; vez outra se repondo, intempestiva a trama do tempo, se evolando em obstinado silêncio, como se um pedaço de estória escae pelos cantos do quarto – espécie de fragmentos voláteis, sem sentido ou identidade, um caco solto e remoto; e já regressa, outra vez em cascata, num eterno retorno que difere sempre, Erika caminha resoluta, Erika se esconde debaixo da cama, o sonho uma chaga um estampido, talvez que uma vazante de imagens a encharcar o corpo de menina de um suor aflito, o fio de urina a descer das pernas, em agonia, todos os orifícios aos cântaros, um sonho de imagens que insistem, sem matizes de cor, a paleta baça, mórbida, e àquele tonel de corpos avulsos e aviltados, sem espessura ou perspectiva, corpos sem nome, sem data, sem inscrição, sem rosto, sem cheiro, inertes inermes amontoados a uma planura chapada, feição da morte entrada em cena, sem ensaio de gestos, sem partitura de movimentos, sem vozes em coro, sem sussurro ou glossolalia, sem palavra cortada pela metade, sem a evasão de qualquer espectro sonoro; sequer sem as mãos espalmadas ao losango da face de Munch o grito ao reverso num para dentro, profundo, inteiriço, em retroação, sem a ondulação do horizonte que flui esparramado, tudo em se fazendo constrito, o corpo magérrimo, vergado, a cabeça à altura dos joelhos. Erika está entre fantasmas, íntimos em demasia.

Vez mais o sonho de Erika se apaga, acende, às vezes o mesmo, noutras vezes distinto, inteiramente outro, um feixe de espinhos, as contrações lhe tomando os baixios, o ventre esmerilhado, a tontura até um quase desmaio desmonte, Erika talvez caia, Erika se levanta, está pequena, está grande, ela cresce e decresce em questão de instante, um átimo de anos, Erika tem nove ou dez anos outra vez, ela olha para trás e quede, cadê – não vê nada, não enxerga um palmo além do vazio em que custa, lhe custa, ou ou, agora ela está grande, a barriga inchada dos nove meses de cria8, uma Érika grávida, inteiramente grávida, um ventre saturado de fantasmas, Erika carrega um filho entre os escombros, ele lhe pede ingresso e agem, lhe esgarça as paredes do útero – a casa de lava; Erika precisa rachar os caminhos do corpo que lhe espelha a criança de nove anos; Erika está aos trabalhos de parto, ao fundo se ouve um trinado de pássaros; Erika escuta o retorno da palavra, a resposta do pai Sim sim já matei, e não foi pouco, e não me arrependo, e voltaria a fazer, tal e qual e não há voltas, o ponto de infusão o ponto de inflexão, os bacilos escorrem pela mesa cirúrgica, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol, Erika procura pelo filho, o cirurgião de mangas arregaçadas lavando as mãos, o ventre está desinchado, o espelho lhe devolve os nove anos como se fora de uma pancada, um golpe, o soco inglês lhe entregando de bandeja o nocaute, Erika está indefesa, em suspenso e paralisia, os interiores do armário talvez lhe servissem de refúgio, outra vez ali a corredeira dos gestos, o balanço, a praça o parque, a folhagem das árvores sugere que é outono, o balanço que vai e que vem, que sobe e desce, e o silêncio mais grande que há – silêncio da palavra interdita, silêncio do arbítrio e do espasmo, Erika está inteira dentro da tosse que não cala, tentativa da palavra talvez, a tosse o refluxo, como se fosse a asma e o afogamento do mundo 

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Levar o testemunho a juízo… 3z5r5r

Aos seis dias do mês de outubro de dois mil e dezessete, na cidade de San Martín, a Sra. Erika Elizabeth Lederer, de nacionalidade argentina, nascida em 27 de novembro de 1976, na província de Salta, de estado civil divorciada, portadora da cédula de identidade número tal, de profissão advogada, residente na Rua Ayacucho número tal, na Cidade Autônoma de Buenos Aires, número de telefone tal, compareceu em sessão do Tribunal do Juri no caso relativo ao Batalhão de Aviação 601 de Campo de Mayo para prestar depoimento na condição de testemunha no que tangia à participação do Oficial de Comando Capitão Médico do Exército Argentino Ricardo Lederer, seu pai. São palavras de Erika, em juízo:

Em relação aos voos, te posso dizer que fiz duas perguntas a meu pai: uma, quando era pequena, lhe perguntei se havia matado alguma vez, e ele me respondeu que sim. Eu tinha 9 ou 10 anos de idade. Na outra vez, durante o ensino médio, quando tinha entre 13 e 15 anos, digamos que eu tivesse 13 anos, [perguntei] se havia participado dos voos da morte, nestes termos porque assim se escutava nas ruas, mas também no que diz respeito a isto, pouca coisa ele me contava uma vez que eu era tratada como traidora ou esquerdista por todos da minha família, e de fato meu pai me dizia que se estivéssemos em outra época ele teria que me tirar do país. Com relação aos voos, me disse uma vez que ‘sim havia participado’, porém não me disse com que frequência o fazia. Lembro-me que, de imediato, em razão de sua resposta, comecei a pensar como podia um médico que havia feito o juramento hipocrático subir em um avião para matar pessoas; ingenuamente, me perguntava se os curavam antes de jogá-los para fora do avião. De fato, não entendo por que razão levavam um médico nestes voos se, ao fim e ao cabo, iriam matar as pessoas. Por isso mesmo é que não entendo a razão de ter assinado antes o juramento hipocrático, ou seja, o médico não pode matar nem ser cúmplice de uma morte, e ainda assim, ele o fazia. Creio que eram helicópteros e não aviões: recordo que meu pai havia dito que eram helicópteros, e lembro que aí se encerrou nossa conversa. Isso me provoca dor, pensar que uma mulher haja parido e logo em seguida se lhe atira ao rio. Penso que partiam de Campo de Mayo porque ele estava lá todos dos dias. Além disso, esteve no movimento Cara Pintada com Seineldin, Aldo Rico9. Meu pai havia feito o curso de Comando, de fato ele queria ser militar de carreira, mas como tinha um problema na vista, não podia; então, ele estudou medicina para poder ser militar. Antes ele havia estudado na Escola Militar: era a promoção 26. Sobre nomes que lembro que eram sempre mencionados, havia Bianco, por exemplo. Em relação aos voos é o que sei10.

Relatos de Juan Nadies (6): ‘Eu acuso a Julio Alejandro Verna, meu pai, médico e capitão do exército argentino, de genocida!’ – A Nova Democracia
Avançar além da historieta pessoal, mais além do drama particular, da família implodida no que a trama se desenrola ponto a ponto, de forma lenta e
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Interpelada pelo representante do Ministério Público sobre a frequência com que Ricardo Lederer participara dos voos da morte, Erika contou que não dispunha desta informação, mas que pela forma com que seu pai havia mencionado o fato, lhe pareceu que era algo habitual a ele, mas que seu pai se bastava em responder ao que ela eventualmente lhe perguntava e que nunca partia dele o intento de uma revelação. E especificamente no que tange a este tema dos voos da morte, Ricardo Lederer não voltou a fazer qualquer menção, sequer para esclarecer as razões que o levaram a participar deste método de extermínio ou para descrever as funções que ele exercia nestes operativos. Quiçá houvesse outras pistas e documentos, entretanto, Erika conta, sua mãe havia destruído o diário particular de Ricardo porque havia ali muita coisa dolorosa de ser lida11.  

Além do representante do Ministério Público Dr. Hugo Bogetti, o documento da declaração testemunhal de Erika Lederer é firmado pela Juíza Federal Alicia Vence, o secretário Agustin Rodriguez Berdier e o advogado especialista em Direitos Humanos, Dr. Pablo Llonto. 

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O contato, a entrevista 626w5u

Foi numa tarde de final do verão portenho, no dia 22 de março de 2024, quando depois de dois meses tórridos o calor havia arrefecido, que sugeri a Erika Lederer a tranquilidade do pátio interno do Monasterio de las Monjas Catalinas, na Rua San Martín n.705, no bairro do Retiro, para uma conversa larga, regada a doses duplas de café e água mineral. 

Lembro que, uma semana antes, quando a ei, lhe havia dito de meu interesse em documentar sob diversos modos as vozes dos desobedientes – sob a forma de ensaios publicados em vários portais de comunicação classista; e de imediato, no formato livro em que tais ensaios seriam compilados a fim de evitar a dispersão e o efeito fragmentário de uma recepção quando restrita à veiculação por meio digital; e ainda, lhe contei de meu intento em me dobrar sobre o tema, afim de gestar um texto dramático com montagem teatral, ou seja, distintas ações e intervenções visando divulgar em meu país as pautas e perspectivas dos desobedientes encetadas à contrapelo e, tantas vezes, sob o estigma  e a desconfiança de amplos setores do campo progressista. Signo sintoma de um fenômeno que lhes parecia incongruente – que filhos e filhas de genocidas viessem à publico expor, desde as entranhas do entramado familiar, a repugnância para com o legado dos pais. A meu ver, tal incongruência lhes sobre valorava a potência de sua enunciação uma vez a gravidade vivida àquele tempo histórico12.

É que em seis meses de estadia em Buenos Aires, estava tendo a oportunidade de testemunhar o recrudescimento da violência de Estado com a ascensão do governo de Javier Milei/Victoria Villarruel, e à esteira disto, um sub-reptício avanço das teses dos Dois demônios, sob novos preceitos tático-estratégicos – algo que se consolidava há algum tempo, em conformação de uma teia narrativo-institucional que visava a recolocação dos militares e das Forças Armadas, em parelho com as Forças de Segurança pública, na condição e lugar de ator político e instrumento de repressão em conformidade com as necessidades funcionais do projeto de saqueio capitalista em curso13. Claro está que o projeto antinacional e ultraliberal de Milei/Villarruel se inscreve em uma esfera de ressonância que transcende os limites do território argentino, denotando o novo estágio devastador da ação imperialista na América Latina e no mundo14

Erika me atendeu prontamente – disponibilizando-me um sem-número de links de entrevistas, depoimentos, testemunhos que remontavam aos ensejos iniciais dos encontros, reuniões, ações públicas dos filhos, filhas e familiares de genocidas lançados à tarefa política de rechaça-los em escraches, eatas, no trabalho militante e pedagógico do testemunho apresentados em eventos diversos, assim como, nas denúncias em juízo, ou seja, se estava operando a formação de novos sujeitos coletivos que pudessem aportar elementos e provas à evocação da Memória, Verdade e Justiça. Era meu trabalho de casa atravessar todo àquele material que me fora disposto por Erika Lederer. E assim foi feito.

Recordo que, entre tantas informações acumuladas, uma alegoria utilizada por Erika me pareceu precisa e pontual, a da caixa de Pandora escancarada por meio daquelas vozes em depoimento, espécie de contrainformação a se chocar contra o código de silêncio aplicado pelos militares do Processo de Reorganização Nacional. Nos termos de Liliana Furió:

O fato de alguns de seus filhos terem ado para o outro lado, enquanto eles, roubando bebês dos desaparecidos e criando-os em seus ventres, queriam convertê-los, é mais um sinal de que a história se voltou contra eles15.

Relatos de Juan Nadies (5): Las chicas de Malvinas, as mulheres da guerra – A Nova Democracia
Nova reportagem da série de Relatos de Juan Nadies, de André Queiroz, traz entrevistas e relatos sobre a Guerra das Malvinas
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E Erika salientava, outra vez, que não se tratava de reivindicar a condição de vítima do terrorismo de Estado, tampouco de se manter sitiado, entre o escândalo, o gozo e a reclamação das dores vividas como se se estivesse tão somente a uma catarse coletiva; o fundamental que se deflagrava nas ações deste novo sujeito coletivo de enunci(ação) era o levantamento, a organização e disponibilização de dados que pudessem, de alguma forma, colaborar na busca incessante e sempre renovada pelos netos – ou seja,  filhos e filhas desaparecidas que nasceram em maternidades clandestinas nos centros e locais de sequestro, detenção, tortura, assassinato e desaparecimento forçado, e que foram entregues aos cuidados de famílias apropriadoras – direta ou indiretamente relacionadas com as forças de opressão do regime. Maternidades tais como a de Campo de Mayo na que Ricardo Lederer atuava como médico obstetra, além de ter sido o seu irascível subcomandante16.

Naquela tarde de entrevista, havíamos acordado que atravessaríamos o tema familiar, mas que, sobretudo, nos deteríamos nos aspectos políticos e atualíssimos da ‘contra-voz’ dos desobedientes face ao avanço dos intentos protofascistas expressos na figura da vice presidenta Victoria Villarruel.

– Comecemos por sua história pessoal. Como as coisas foram surgindo em sua vida? Ainda pequena? Imagino que deva ter havido um tempo em que tudo parecia estar em ordem, a típica naturalização comum à família militar?

Entre os filhos e filhas de genocidas há àqueles com processos longos como foi o meu caso, ou o de Mariana Etchecolatz, grande amiga, aliás, ex-Etchecolatz, ela agora se chama Mariana Dopaso, e temos casos de processos bem curtos, como foi o caso de Analía Kalinec – que já tinha filhos quando moveu um processo judicial contra seu pai17. Nestes casos de longo prazo, entendo que se trata de uma fratura do discurso paterno a pontapés. Aos nove anos, perguntei ao meu pai se ele já havia matado alguém, e isto porque havia pistas em minha casa – lembro de matérias de jornais com retratos, caricaturas e informações sobre ele; ele escondia tudo, e isso me gerava desconfiança; recordo uma vez que ele apareceu, em um diário, como sendo amigo de Ramón Camps, tudo isso o irritava bastante, mas quando lhe perguntei se ele havia matado, ele me respondeu que sim; enfim, foi como um ponto de inflexão, de repente tudo havia mudado, e foi como se naquela hora eu tivesse iniciando um longo processo, e o tempo foi ando, até que eu, durante o ensino médio, começo a ler muitíssimo e vou desconstruindo o discurso hegemônico que havia em minha casa. Meu pai era nazista, isso está no Nunca Más [Informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas] citado como o louco com pretensões de purificar a raça18.

Lembro de quando eu estava no segundo ano, um dia, eu digo assim de repente: Tenho ódio aos judeus! – e aquilo ecoou em mim, eu me escutava dizendo aquela frase, foi como um giro na minha cabeça, eu me perguntava por que estou dizendo isto sem que haja um motivo? É a banalidade do mal – sem que houvesse razões, sem qualquer fundamento eu me pego reproduzindo uma forma de pensar, e comecei a investigar, me aprofundar, a ler e ler cada vez mais, e ler é algo que te abre um montão de mundos, e então, vou chegar à universidade, etecétera. Lembro uma vez que avam as abuelas de mayo e fiquei parada olhando e comecei a chorar, não sabia bem o porquê, me abraçaram e me perguntaram por que eu chorava, lhes respondi dizendo vocês não vão entender, eu estou do outro lado. Comecei a me sentir totalmente culpada ou cúmplice de alguma forma. Eu sempre o interpelei sobre o que ele tinha feito, desde cedo, e ao longo dos anos, lembro dele me dizer que se estivéssemos nos anos 1970, ele teria que me tirar do país porque eu era esquerdista. Ele me espancava por eu pensar de outra forma que ele, me surrava muito porque eu era trotskista, por isso saí de casa.

– Ele era do tipo que tergiversava, que saía pela tangente, que não respondia o que você perguntava a ele?

Em termos, por exemplo, ele dizia que os desaparecidos haviam ido para a Europa, e soltava uma gargalhada, que estavam tirando sarro da gente, que estavam gozando férias na Europa. Certa vez, e quando voltei de viagem, todos os meus livros estavam espalhados pelo chão do quarto, revirados, ele tinha encontrado dois jornais trotskistas e como resultado disso, me espancou muito, foi desta vez que saí de casa definitivamente. Eu ainda não tinha o meu diploma, estava em tramitação, simplesmente fui, não havia mais como ficar lá. Se aram anos, anos sem que trocássemos palavra, foi então que quando retomamos o diálogo entre nós, lhe perguntei voltei a perguntar se ele havia participado dos voos da morte, ele me disse que sim, e acrescentou que se fosse preciso, ele voltaria a participar, que não tinha qualquer arrependimento, nunca mais me dirigi a ele, e não demorou muito soube que ele havia se matado com um tiro na cabeça19.

– Você fala de instantes em que não houve retorno, como viradas de chave, pontos de inflexão que tornam impossíveis qualquer retorno.

O Governo Militar Secreto
Publicado originalmente em 1987 por Nelson Werneck Sodré, grande historiador marxista do Brasil, o livro desnuda o que há por detrás das eleições, do parlame…
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Isso se deu quando, aos nove anos, tal como te contei, lhe perguntei se ele já havia matado alguém. Eu me perguntava como é que alguém que fez o juramento hipocrático, que tinha por função curar pessoas poderia ter chegado ao ponto de ass alguém20. Não podia confiar mais nele, de jeito algum, algo havia se quebrado para sempre. 

– O que ele te contou?

Praticamente nada. O que ele falava era sempre justificado de imediato dizendo que a guerrilha subversiva queria empoderar o comunismo em toda a América Latina e que havia que ser exterminada. Depois disso, então, contava o que se deu no monte tucumano durante o Operativo Independência, sobre como ele arrebentava gente. Era assim mesmo que ele falava, para assustar a gente. Me lembro que ele contou que havia arrebentado a mulher do [Mario Roberto] Santucho, nunca soube quem havia sido a mulher de Santucho21, porém lembro que era com esse termo que ele se referia a isto. 

– Mas a companheira do Santucho havia sido assassinada no massacre de Trelew…22

Claro, ele se referia a outra mulher. Foram anos perguntando coisas, sondando como podia ter feito isto ou aquilo…, mas eles, os milicos, não te respondem. Foram anos lendo, buscando informações, e o ponto-limite se deu no ano de 2016, as abuelas de la Plaza de Mayo, em sua campanha de busca de netos, lembro de uma campanha que dizia algo como eu sou fulano de tal e posso dizer meu nome, foi algo que me chocou, então eu mandei uma mensagem ao Camilo Juárez País que é membro do grupo HIJOS, eu sabia disso, então o escrevi no privado sou Erika Lederer, filha de um genocida, sei quem sou porque fiz o exame do DNA, e posso dizer o meu nome, porque dessa forma podia contribuir de alguma maneira com a campanha, pois se se é filha de um genocida e não se permanece calada, ainda que dê negativo o resultado do exame de cotejo dos dados, isso serve às abuelas para que não continuem a busca por essa linha, e que sigam investigando por um outro lado, enfim, o caminho de minha exposição foi se tornando público. Então uma porção de programas de rádio me convidaram, e depois, em 2017, quando foi o intento de fazer ar um dispositivo para indultar os criminosos por lesa humanidade, o 2 por 1, eu escrevo na página do Facebook uma convocatória aos filhos e filhas dos genocidas para que repudiem a seus pais, e que se prestem a aportar dados que auxiliem nos trabalhos de construção coletiva de Memória, Verdade e Justiça; e que nos juntemos, que nos organizemos em um agrupamento. 

Lili, Analía e eu nos encontramos pela primeira vez na esquina de minha casa em um bar que já fechou quando da pandemia. E aí se formou Historias Desobedientes. Depois de uma semana, já éramos seis, e fomos nos juntando, chegando outras pessoas, depois de uns seis meses, se juntou a nós Pablo Verna. É imprescindível que façamos a atualização destas lutas, porque em nome das lutas que encetamos hoje foram mortos 30 mil companheiros, ou seja, nós temos que brigar para que não haja impunidade, para que isso não venha a se repetir, e nesta direção também estão as lutas sociais cotidianas, e esta é uma forma de atualizar a memória por meio da justiça. ado algum tempo, nos dividimos porque havia discordâncias entre alguns de nós; seis companheiros seguiram comigo, entre estes, a ex-filha de Etchecolatz, Florencia Lance cujo pai era de Campo de Mayo também; Alejandra Éboli entre outras; Pablo chegou um pouco depois a Historias Desobedientes e deixou essa agrupação um pouco mais tarde que eu.

– Pablo está contigo em Assembleia Desobediente.

Sim, mas àquele momento era uma outra organização que se chamava ex-filhas e ex-filhos de genocidas pela Memória, pela Verdade e pela Justiça, era outra agrupação. E uma coisa que nos potencializava era o fato de que nós éramos filhos e filhas de grandes repressores, não éramos familiares distantes de um genocida, éramos filhos e filhas de tipos muito comprometidos com o terrorismo de Estado. 

– Voltemos um pouco ao teu pai. Onde estava teu pai?

Ele era o segundo chefe da maternidade clandestina de Campo de Mayo.

– E o que fazia lá?

Era obstetra, fazia partos, fazia os partos daqueles bebês que, depois, teriam a sua identidade subtraída, seriam separados de seus verdadeiros pais. Ele também participou dos voos da morte. Em 2017, testemunhei contra ele na Mega Causa Campo de Mayo, dentro de uma causa menor que se chama Irregularidades do Batalhão 601 que é sobre os voos da morte23. Mas ele esteve também em Tucumã durante o Operativo Independência, esteve em Córdoba, em Salta – que foi quando eu nasci, esteve em La Plata, vinculado ao centro clandestino Vesúvio24.

– Sempre como obstetra?

Sempre como obstetra, porém ele era um comando – ou seja, ele fazia parte dos destacamentos especiais que são específicos àqueles que fizeram cursos de preparação para a guerra, meu pai era um tipo preparado para estar a frente de diversos operativos. Esteve também nas sublevações dos Caras Pintadas com Aldo Rico e Seineldin.

– Ele participou também dos grupos de tarefa, as patotas da repressão?

Ele formava parte das patotas também. Ele gostava de participar de tudo isso. Sempre quis ser militar e não médico. Porém como ele tinha um problema de vista, não o itiram como militar, a princípio. Ele então seguiu o curso de medicina para poder estar dentro das Forças Armadas como médico.

– E tudo isso tomado por uma franja larga de ilegalidade – a despeito do oficialismo militar.

Mais do que isso, porque todo genocídio é ilegal, aliás, os crimes contra a humanidade são a aberração maior, a ilegalidade suprema. Depois de 1982, ele sai do exército e vai para a Polícia de Buenos Aires, e permanece aí até o dia em que se suicida. Ele era subcomissário, fazia as autópsias, era médico forense; trabalhou também para a Techint como médico legista até o último dia de sua vida, ou seja, para esse tipo de empresa que massacra, arrebenta pessoas, e que seguem funcionando normalmente até hoje. Tais empresas são experts em recrutar esse tipo de gente como era meu pai. Eu sempre digo e repito que há que investigar e levantar os nomes dos agentes do grande capital, nome e sobrenome, e levar a público os seus vínculos com as práticas genocidas, porque são os mesmos que fomentaram o terrorismo de Estado, foram estes mesmos grupos que apoiaram e sustentaram o Plano Condor e a Escola das Américas, que bancaram todas essas políticas econômicas,  tipos tais como Martínez de Hoz; foram esses grupos que fizeram avançar todas essas medidas que somente poderiam ser aplicadas com a repressão, e hoje, atualizando o debate, somente com o avanço da repressão eles podem garantir que siga em frente o plano de fome de Javier Milei, isto que se pode ver diariamente, o aumento absurdo da repressão, porque sem repressão,  não am tais medidas, não vinga a prática do ajuste ultraliberal, as massas se levantam, inevitavelmente25.

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As urgências do agora… 581b53

São 9175 casos de mortos em mãos das Forças de Segurança, segundo dados da CORREPI 26[Coordinadora contra la represión policial y institucional], por gatillos fáciles – ou seja, executadas pelos agentes da repressão de Estado. E isto se dá sob um manto de impunidade, sem falar das reformas do código penal que querem impor. No que tange às Forças Armadas, a negação e o ocultamento são as facetas últimas de um genocídio, segundo Daniel Feierstein, sociólogo argentino que investiga o terrorismo de Estado. Eles negam que tenha havido 30 mil desaparecidos, eles afirmam que foram 8 mil, quando eles mesmos já haviam reconhecido isto em 2006 em uma publicação de La Nación – se tratava de documentos desclassificados nos quais o próprio Exército reconhecia que de 1975 a 1978 foram 22 mil casos de mortos e desaparecidos, ou seja, eram eles mesmos que haviam afirmado, e atente que os documentos eram do ano de 1978. Ou seja, faltavam ainda cinco anos até o final da ditadura.

– Os governos progressistas promoveram alguma mudança nos currículos das Forças Armadas?

 Não, não o creio. Na verdade, embora eu pessoalmente não saiba ao certo, pelo que se pode ver de fora, a que era a Escola Superior de Guerra, agora reluz com um cartaz de Centro Educativo das Forças Armadas; neste sentido, suponho que durante a gestão de Nilda Garré a frente do ministério de Defesa houve algum intento, porém que não pode superar o muro que planteiam essas políticas reformistas.

Em resumo, reafirmo, de minha perspectiva sou ascética a que algo haja sido modificado nos planos de estudo dos Institutos de formação das Forças Armadas e de Segurança. Se isso houvesse acontecido, como teria sido possível que quando Néstor Kirchner mandou tirar o retrato de Videla da parede, o quadro fosse uma réplica uma vez que o original já havia sido resgatado por jovens cadetes supostamente educados sob tais reformas democratizantes? Inclusive desde a época de Alfonsín é que se vem autoproclamando, mas com que resultados? (a informação remete ao livro “O Quadro”, de Joaquím Sánchez Mariño e Julián Zocchi e me parece fidedigna). Além disso, algo que se deu durante estes anos, o benefício velado a repressores se manteve em um nível mais discreto, inclusive houve designações de pessoas suspeitas de participar em operativos repressivos como Milani, nomeado no Estado Maior das Forças Armadas ou ex-carapintadas como Berni ocupando cargos nos ministérios de Segurança Nacional ou da Província de Buenos Aires. Qual é a imagem que irá refletir na base de tais Forças se se nomeia a estes suspeitos a frente dessa Força? Promove a democratização ou a astuta reivindicação latente?

Agora, vejamos, durante o governo de Mauricio Macri houve um ressurgimento reivindicativo dos genocidas, eles romperam o cerco que lhes havia imposto os Direitos Humanos, e não falo especificamente do Exército, mas das forças de repressão em geral, são inúmeros os casos de assassinatos durante a democracia. Os perpetradores foram jovens imbuídos nessa democratização anunciada dos planos de estudo ou vinham de antes? A coexistência de ambos os grupos serviu para democratizar ou os antigos ministraram cursos de repressão aos jovens camaradas? Veja o caso do desaparecimento de Julio López – quando Etchecolatz foi visto com um papel na mão dizendo que ele deveria ser sequestrado27, e nunca é demais lembrar que Villarruel estava na linha direta de contato com um tipo como Etchecolatz, ou seja, estes são os vínculos que sustentam essa gente, eles têm como substrato todo o poder econômico que os mantém e promove, assim como manteve e promoveu o genocídio – cujo objetivo era submeter e dominar a classe trabalhadora que estava lutando para escapar da crise social que havia sido imposta pelo Plano Econômico de Martínez de Hoz – e Martínez de Hoz, por sua vez, respondia às transnacionais, à empresas como Techint, Ford, Acíndar, Mercedes Benz que marcavam operários em uma lista negra, e que mais do que isto, [seus estabelecimentos e plantas de fábrica] funcionavam com centros clandestinos de detenção. São os ‘cúmplices civis, empresariais, da ditadura, que mantinham os militares, e que seguem operando até hoje28.

– A ditadura cumpriu uma etapa de pavimentação para o saqueio neoliberal, entre outras coisas.

Claro! O que tivemos aqui foi um exército de ocupação que respondia diretamente aos interesses imperialistas. A oficialidade argentina fez cursos na Escola das Américas promovida pelos Estados Unidos para controlar ‘o pátio traseiro’, inclusive àqueles que se diziam nacionalistas, como era o caso de Seineldín, que era instrutor nessa Escola. Importante agregar algo que diz respeito a este governo atual, o aumento substancial dos investimentos nas Forças Armadas – isso já indica o ordenamento do campo repressivo, e que se busca legitimar por sua reivindicação.

– E a justificativa é a sua modernização?

Não apenas, mas é sobretudo, o tema da segurança interna. A tese do momento é o combate à narco criminalidade, e sob tal pretexto, agora, querem nos impor uma lei antimáfia assim como a perseguição e a criminalização do protesto social.

O que se deu foi a Lei Antiterrorista que é da época de Cristina Kirchner quando, sob o pretexto do combate à narco criminalidade, tornaram possível que se venha a acusar de terrorista a insurgência popular ou os movimentos sociais quando mobilizados, coisa que estamos vendo acontecer agora, e aí já ingresso no tema relativo a Victoria Villarruel – porque ela é a porta-voz do Exército; eles querem condenar as organizações insurgentes como ERP [Ejército Revolucionario del Pueblo] e Montoneros por suas ações nos anos 1970, isso é o que pretende Villarruel com a Memoria completa29.

Te volto a repetir, era esse o tema da lei antiterrorista que foi sancionada por Cristina Kirchner e que é perigosíssima – há companheiros que estão presos desde àquela época por um ato de apoio à luta palestina e que foram acusados de terroristas e, efetivamente, tens de cumprir uma pena de reclusão [em cárcere penal], quando, por outro lado, muitos genocidas estão em casa gozando de benefícios processuais. Não é verdade que eles cumprem suas penas em cárcere comum. Para muitos destes beneficiados, que são verdadeiros escroques, se lhes concede prisão domiciliar por idade avançada. Isso é uma forma de impunidade também. Eu trabalho com presos e quando vou ao Complexo Penitenciário Federal Marcos Paz, no muro ao lado estão os presos por delito de lesa humanidade, com distintas condições de alojamento, eles estão bem melhor do que os presos comuns.

– Já entrou lá alguma vez?

Para ver os genocidas, nunca! Nós, do Programa de Mediação em Contexto de Aprisionamento do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Nação nunca atendemos genocidas por uma questão de ética. Por questões de princípios
30.

– Nem para observar as condições em que eles vivem lá dentro?

Se consegue ver pelo lado de fora, e fora a parte isso, há gente que nos conta, gente dos serviços penitenciários, eles são tratados como se fossem heróis de guerra, por essas e outras se pode perceber como não se modificou a lógica repressiva, nem a consciência dos militares. 

– Você diria que já se suplantou de todo a teoria dos dois demônios? É que me parece que o que há é um certo caldo cultural que rebate em distintos setores da sociedade, inclusive em alguns dos organismos de direitos humanos quando rechaçam, por exemplo, o tema da violência revolucionária dos anos 70.

A verdade é que tenho um rechaço visceral pela teoria dos dois demônios – porque ela te leva a considerar que o que houve foi uma guerra e não um genocídio, uma guerra e não o terrorismo de Estado, como se se tratasse de uma batalha entre dois grupos simétricos, como se as duas metades em luta fossem equiparáveis. Os [dispositivos] de poder do Estado se voltados contra grupos insurgentes nunca estarão em igualdade de condições, então não se trata de usar os termos da teoria dos dois demônios. A meu ver, isto já foi superado quando a Justiça qualificou o que se deu como genocídio, esse relato está referenciado e legitimado pelos tribunais.

E, o que é óbvio, havia terrorismo de Estado, reforço que, em minha opinião, não havia dois demônios, havia apenas um demônio que era o Estado, e que isto já foi declarado pelos tribunais. O que querem é retroceder, voltar atrás, revisar o que foi determinado pelos tribunais. Não se baseiam em nenhum fundamento, querem aplicar retroativamente uma lei que não existia nesse momento, e mais do que isto, operam no sentido de promover uma legitimação simbólica da repressão. Assim é como eu percebo.

– Sim, de fato, mas numa perspectiva institucional e legal, porém ela encontra outras caixas de ressonância no tecido social.

Claro, me parece que se tomarmos o que se ou nestas eleições presidenciais [outubro e novembro/2023], evidentemente que ao votar em Milei/Villarruel se está, de algum modo, apoiando esta ideia da Verdade completa. Vejamos o que nos irá mostrar esta marcha do próximo dia 24 de março [2024] – será um medidor de como as coisas estão – porque uma coisa é ter votado em Javier Milei, e outra é ser a favor do genocídio. São coisas distintas. Para aqueles que estamos na luta social sabemos distingui-lo, todo modo, quero crer, há gente que votou e que não está sequer a par do que estamos aqui debatendo. Não que eu ache que devamos deixar de lado este debate em torno da teoria dos dois demônios, é imprescindível que não nos esqueçamos o que ela significa. Que eles tenham a pretensão de reinstalá-la não cabe qualquer dúvida. Isto está em todos os livros que Villarruel escreveu.

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Intermezzo… 3c6ys

Trecho da carta aberta dos familiares de CORREPI 4l1v52

Os familiares de CORREPI escrevemos esta Carta Aberta a partir da dor, porém também desde a luta coletiva encetada por nossa organização. Falta-nos muito a dizer e expressar porque nossas gargantas e mãos estão ocupadas com todo o sofrimento que portamos por seguir defendendo a nossos filhos, irmãos, esposos, que foram assassinados pelas forças que dizem ‘nos proteger’ e que continuam sendo fuzilados a cada comentário em televisão ou redes sociais quando se festeja a morte daquele que amamos.

Desta vez, queremos nos dirigir àqueles que, ao menos, não celebram o sofrimento alheio com a esperança de que cada um de vocês possam intervir junto àqueles que, tomados de ódio, comentam em suas publicações coisas como ‘um a menos’ ou ‘uma medalha para esse policial’, reproduzindo o discurso oficial que criminaliza aos jovens pobres.

Neste ano de governo Milei, Villarruel e Bullrich, os mesmos carrascos de sempre, porém que agora unidos, e desta vez, eleitos democraticamente, vemos como vem avançando a mudança de regime e como as pessoas parecem viver ‘tranquilas’ a despeito de que sejam reprimidos os aposentados e trabalhadores, a despeito de que se torne cada vez mais difícil esticar a receita até o final do mês. Não nos surpreende que junto com a reivindicação da última ditadura por este governo, e junto às políticas de cunho fascista, volte a ser moeda corrente o ‘não te metas’ e o ‘alguma coisa terão feito’. Convenceram a muitos de que nossos filhos são ‘o problema’ e governam para exterminá-los com uma bala, com a repressão ou a depressão, com a pena de morte ou a morte através da pena, ou da fome, com os corpos consumidos pela droga, pela arma mais poderosa: o ódio espalhado entre nós e contra nós mesmos. Esso é o que quer instalar o poder.

Agora mais do que nunca é necessário pôr em ordem do dia a tarefa de comover, sensibilizar e voltar a pôr em prática acordos sociais que parecem destroçados. Levar ao conhecimento de todos os casos de repressão estatal – que não é um mero dado estatístico, mas que são vidas de pessoas e de jovens que traziam consigo seus projetos de vida e que foram brutalmente arrebatados. (…) Já perdemos o que mais queríamos, porém não fomos vencidos. A memória dos nossos nos empurra às ruas. Com a morte dos nossos familiares, assumimos o compromisso de entregar a vida à luta contra a injustiça. 

Eles nos ofertam o seu nojo, seu ódio, o desprezo com que nos tratam estes funcionários e seus meios genocidas de comunicação, que são os mesmos responsáveis pela desaparição forçada de 30.000 companheiros.

Sabemos que vivemos em um mundo às avessas: um mundo onde não há direitos, porque a polícia pensa que pode tirar a vida de um ser humano impunemente, sabendo que há um Estado que deveria se responsabilizar e assumir os seus crimes, mas não o faz. 

Para eles, não somos nada, não lhes importa que as pessoas que são assassinadas tenham uma família. Ao matar por matar, pensamos que o ser humano valha cada vez menos nesta sociedade destituída de valores.

Muitas de nossas famílias confiaram na Justiça e até mesmo nas forças de segurança, tal como àqueles que hoje exigem mais segurança, pensando que se alguns de nós corríamos perigo seriam eles que viriam em nosso socorro, porém não, não foi assim… a Justiça se encarregou de arrancar a vida de nossos filhos sem qualquer motivo, sem qualquer razão. Eles foram executados em uma cela ou por um tiro à queima roupa sob pretexto de que eles teriam se suicidado ou de que morreram em um enfrentamento. Quem poderá nos tranquilizar garantindo que estes policiais corruptos serão presos e que irão pagar pela morte de nossos filhos? Quem? O Estado? O mesmo Estado que, hoje em dia, te marca e discrimina pelo simples fato de se estar usando um boné ou andando sem camisa, ou não se ter frequentado um assento escolar? Por isso, matam a nossos filhos, se creem superiores a nós somente por estar fardados, eles imaginam que tem poder e direito a agirem como bem entendem, a fazer o que querem com os civis, e hoje, com este governo legalizando o crime do ‘gatillo fácil’ nos arrancam a possibilidade de nos defendermos, e mais, reduzindo a idade penal, eles viabilizam a possibilidade de jogar toda a culpa àqueles que são menores de idade, sem recursos, e sem nem pensar na dor que eles provocam em nós que perdemos nossos filhos.

(…) Sabemos que somente com o lamento e a análise – que nunca será o bastante, não conseguiremos avançar. É justamente aí que se nos exige seguir reforçando nossa organização, e nos é fundamental apostar nesta que é a única maneira de lutarmos contra àqueles que nos arrebatam nossos direitos legados e conquistados por nossos anteados. Precisamos avançar sabendo que não é fácil, convocamos a que companheiros e companheiras se organizem, e que conforme suas necessidades contribuam a formarmos uma unidade, comunitária, uma assembleia soberana para que a escravidão, o colonialismo, o fascismo, que fazem parte do controle policial, não sigam destruindo as nossas vidas assim como às daqueles que virão30.

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Dos vínculos e intentos de Victoria Villarruel… 2m433s

Erika Lederer havia feito menção às estreitas relações entre a vice presidenta Victoria Villarruel e Alberto González, também conhecido como Gato González, Oficial de Inteligência que foi submetido três juízos de lesa humanidade e condenado a prisão perpétua em dois destes processos. Destaque-se ainda que o terceiro juízo dizia respeito a delitos sexuais – González fora denunciado por Silvia Labayru, ex-integrante da organização político-militar Montoneros, por violações sofridas no cárcere clandestino da Escuela Mecánica de la Armada (ESMA), assim como na residência de Gato González diante de sua esposa. Por tal delito sexual, a pena que lhe foi atribuída é de 20 anos de prisão. González era vinculado ao Grupo de Tarefas 3.2.2, sob o comando de Jorge ‘Tigre’ Acosta, e companheiro de Alfredo Astiz, também ligado a esta patota repressiva. Fora condenado à prisão perpétua por sequestro, tortura, privação de liberdade, morte ou desaparição forçada. 

As relações entre Victoria Villarruel e Gato González remontariam ao pai de Victoria, oficial paraquedista Eduardo Villarruel31, que os teria apresentado em 2005. Segundo as fontes utilizadas em matéria publicada por Prensa Obrera, fora Alberto quem haveria instigado a Victoria Villarruel a formação de um organismo que tomasse como pauta o debate em torno da memória completa e da ressignificação dos outros mortos – ou seja os agentes da repressão de Estado mortos em ações de confronto com as organizações guerrilheiras Montoneros e ERP. Como lembra a mencionada matéria de Prensa Obrera: “Um ano mais tarde, como se sabe, Villarruel fundou o Centro de Estudos Legais para as Vítimas do Terrorismo (Celvyt). A vice presidenta já havia ado por AUNAR (Associação Argentina Unida – ou no original Asociación Unidad Argentina)”32

Digno de nota, ainda, e lembro que Erika havia apontado isto, é o que veio à tona quando da campanha eleitoral da chapa Milei/Villarruel. Durante o programa GPS, cujo âncora é o jornalista Rolando Graña, no canal A24, Javier Milei fora interpelado sobre se, uma vez eleito presidente da República, indultaria os genocidas condenados por crimes de lesa humanidade durante a ditadura autointitulada Processo de Reorganização Nacional, e Milei dissera que àqueles que cometeram crimes deveriam cumprir as penas a que foram condenados pela Justiça. De imediato, as atenções da família militar se voltaram a Victoria Villarruel, afinal a questão em aberto seria sobre como se posicionaria a candidata cuja plataforma política se ancorava nas tramas de um revisionismo histórico que parecia se espraiar nos distintos sendeiros da trama jurídico-institucional? 

Em uma matéria publicada em Página 12, Luciana Bertoia contará que Cecilia Pando, reconhecida por seu ativismo contra os juízos de lesa humanidade, acusou a Victoria Villarruel de haver assinado os livros que escrevera Alberto González, enquanto este estava preso. (…) Villarruel publicou dois livros, Los Llaman jóvenes idealistas e Los otros muertos: las víctimas civiles del terrorismo guerrillero de los 70’, nos quais não há uma reivindicação do acionar militar, mas o intento de equivaler os criminosos de lesa humanidade com os militantes dos 70’33.

Voltemos à entrevista.

– O trabalho de revisionismo histórico que faz Villarruel me parece que vem de longe. Poderia falar um pouco sobre isto?

Sim, ela é bastante articulada com setores que estão aí há tempos. Villarruel realizava visitas aos genocidas no cárcere de Marcos Paz. Além disso, ela tem se dedicado, sobretudo, a levar à Justiça membros de Montoneros e de ERP [Ejército Revolucionário del Pueblo, de base guevarista]. Em um de seus livros, ela investigou uma quantidade de vítimas de supostas ações guerrilheiras, e chegou a uma cifra de 17 mil, uma loucura! Dizia que era essa a quantidade de vítimas dos guerrilheiros por contraposição às vítimas do terrorismo de Estado que seriam 8 mil, percebe? Ela toma a si a tarefa de promover um câmbio discursivo, um revés narrativo, digamos, é um instrumento ideológico desta engrenagem a serviço de outros que são àqueles que operam, de distintos modos, na superfície. É importante salientar que, ano ado, houve um ato reivindicatório do genocídio em um salão da legislatura da Cidade de Buenos Aires, promovido por Villarruel para reivindicar às ‘vítimas da subversão’ e que trouxe a público a presença de peronsgens 35. Além dos históricos organismos de Direitos Humanos sempre presentes em todas as lutas e reclamos democráticos e populares, foram poucos os políticos que repudiaram a isso (alguns nem sequer se autocriticaram sobre como puderam oferecer essa Casa das instituições democráticas para reivindicar o golpismo), majoritariamente foram gente de partidos de esquerda, coisa bem diferente do que havia se dado, em 2017, quando do intento do 2 por 1 (de concessão de benefícios ao repressor Muiña), cujo repúdio foi massivo e culminou com a reversão dessa decisão nefasta da Corte Suprema da Justiça da Nação. 

Neste ato de agora, não houve uma vigorosa resposta militante enfrentando-o, como se subestimasse a real gravidade e dimensão deste ato antidemocrático, porque o oficialismo – que quero dizer com isto? -, por especulações eleitoreiras e partidárias não se colocou à altura lamentavelmente; desde o Governo de Néstor Kirchner se conseguiu avançar nas lutas pelos Direitos Humanos, com o triunfo expresso na anulação das Leis de Ponto Final e Obediência Devida, assim como com a reabertura dos juízos por casos de lesa humanidade. Por exemplo, neste ato não foram, não repudiaram, não se mobilizaram contra este gesto de Victoria Villarruel – foi uma oportunidade perdida, se lhe deixou ar incólume e pavimentou seu caminho para o poder; é neste sentido que estou dizendo que foi uma oportunidade que se jogou fora deixando de mostrar nas ruas que nunca mais itiremos isto. Talvez, se tivéssemos repetido o que fizemos quando do 2 por 1, hoje não teríamos no poder a Javier Milei, tivemos uma oportunidade histórica de frear este avanço.

– E o que está por detrás disto?

Impor uma ordem simbólica repressiva, e o que Victoria Villarruel está atacando como se fora um poder simbólico é a Memória, a Verdade e a Justiça. E no que atacam a Memória, buscam fechar espaços e lugares de memória tal como a ESMA para convertê-la em algo com ‘carisma’ imobiliário – e é importante destacar que, no caso da ESMA, uma parte do prédio é patrimônio cultural da humanidade porém, hoje, por exemplo, há ali um campo de esportes que foi cedido há algum tempo ao clube River Plate quando se deveria ser preservado porque ali se incineravam corpos todas às quartas feiras, e nesse lugar se pode encontrar provas em investigações arqueológicas. Eles querem apagar isso, querem que nos espaços de memória se fale também dessa memória completa, ou seja, como se pudesse facultar aos nazistas a legitimidade de falar sobre Auschwitz, uma loucura!

Se ataca a Justiça quando buscam a impunidade, seja através do indulto, ou do benefício processual, dizendo que se trata de senhores idosos, velhinhos, que não há condições de mantê-los encarcerados – sob tal pretexto, então, não há condições carcerárias para ninguém, e no caso deles, digamos, as condições são outras, bem melhores; quando se voltam ao intento de processar a integrantes de Montoneros ou de ERP também estão atacando a Justiça. E no caso específico dos indultos aos genocidas, isto acaba rebatendo contra eles mesmos, porque se conseguem avançar, por outro lado, nos atiça a ir buscá-los – tal como diz a canção popular: aonde forem iremos buscá-los – , iremos com os nossos escraches públicos em frente a cada uma de suas residências, e se o que eles querem é ‘lutar contra a insegurança em que estão estes genocidas no cárcere’,  o que eles irão conseguir com tais indultos e benefícios processuais é lhes aumentar ainda mais a sensação de insegurança. 

– Porém tal ‘insegurança’ não lhes servirá como uma moeda que justifique o avanço da violência de Estado?

Claro, porém o que estou dizendo é que há coisas que eles não conseguiram ainda perceber. Pensemos em um cenário em que se consiga avançar no que tange aos indultos a estes tipos, os organismos de direitos humanos se voltarão contra eles, por exemplo, na forma dos escraches que, podemos dizer, é um dos modos de expressão da Justiça Popular. De todo modo, opino que os organismos de Direitos Humanos, até onde sei e compartilho nesse momento, nunca buscaram fazer justiça por suas próprias mãos, mas por meio dos organismos competentes e do efetivo cumprimento das sentenças.

Por fim, falseiam a Verdade com dados que não são corretos, ou seja, afirmando a todo momento que não são 30 mil os mortos e desaparecidos – quando se sabe que este número é um dado em aberto porque aqui não tivemos uma contagem efetiva de mortos, tivemos os 22 mil reconhecidos por eles até o ano de 1978, e a ditadura durou ainda mais cinco anos. Importante que façamos um parêntesis: é que se deveria abrir os arquivos de 1974 a 1983; não temos nem noção de onde estão os registros dos militares, nem desses arquivos, e tampouco os governos do período democrático pediram que fossem abertos estes arquivos porque poderia vir à tona os cúmplices civis da ditadura empresarial-militar. Onde está essa informação? Onde estão os números de desaparecidos, os corpos, onde estão os netos apropriados, isso consta nos arquivos que, sequer o Kirchnerismo conseguiu que fossem abertos. 

A Memória, a Justiça e a Verdade são os três grandes temas atacados por eles, e os atacam um a um, e com precisão e acuidade, Victoria Villarruel é muito habilidosa no que tange a isso.

– Te pergunto algo que talvez seja mais abstrato. Como tem sido lidar, para você que milita em uma organização de esquerda, com a fragmentação das pautas e das lutas?

A fragmentação das lutas costuma favorecer aos inimigos. A sociedade vai se dividindo cada vez mais em dois grandes setores antagônicos, trabalhadores e povo por um lado – com o qual me identifico – contra dominadores e exploradores, do lado oposto.

– E viabiliza o seu avanço…

 Com certeza! Por exemplo, agora que estamos lidando com tantas demissões, na próxima terça feira vão ser 71 mil demissões apenas no setor público. Hoje foram 1.200 demissões em Télam35, etecétera, são lutas fracionadas, quando deveria ser convocada uma Greve Geral pela Unidade dos Trabalhadores; o mesmo se ou com a eata do 24 de Março – quando não se conseguiu conformar uma manifestação unificada, e tudo isto foi consequência de setores do Kirchnerismo não aceitarem que levássemos um documento distinto para ler, documento este com críticas a Menem, a Caputo, ao FMI, a tudo isto que nos aprofunda a condição de colônia do Império, e repudiando a lei antiterrorista. Há muitos interesses em jogo, e àqueles que pensam que a esquerda é sectária, te digo que nem sempre é assim. Também há um setor do peronismo que não faz autocrítica, que não permite que se faça autocrítica, em especial o Kirchnerismo, porque o peronismo revolucionário é coisa completamente distinta. Devemos todos nos perguntarmos como chegamos a Milei, o que o tornou possível? – não no sentido de justifica-lo, mas é necessário saber o porquê do que estamos vivenciando; o porquê das pessoas detestarem os direitos humanos; o porquê das gentes enxergarem nos direitos humanos apenas uma política de governo – como se os direitos humanos se reduzissem ao Kirchnerismo, e não houvesse nada fora desta clave que possa encampar as lutas pelos direitos humanos; creio que não é somente o Kirchnerismo que está apto para falar em nome dos direitos humanos.

– Como se o Kirchnerismo tivesse cooptado as pautas dos direitos humanos…

Sim, exatamente isso. Será que se perdeu a capacidade de autocrítica? Creio que esta é uma das razões do rechaço, do repúdio que as pessoas têm pelo Kirchnerismo que não se mostra aberto para se repensar. Por exemplo, não querem nem pensar que havia 40% da população estava vivendo em níveis de pobreza e que isso é uma parcela enorme, que às pessoas estava faltando recursos até para comer ou que governaram contra do que foi a sua base eleitoral em 2019; obviamente que, com Milei, estamos muito piores, porém temos que pensar como foi possível que chegássemos a isto.

– Creio que haja uma subjetividade que opera sob a forma de uma disjunção cognitiva. Não te parece, por exemplo, que uma parcela grande de pessoas que vivem na periferia haja votado em Milei? E Milei não andou dizendo por aí que iria fazer algo por eles…

De fato! Mas o que também se deu foi o abandono por parte do governo anterior [Alberto Fernández/Cristina Kirchner] destes setores populares. Nas favelas e periferias, se estava vivendo em condições de penúria. Ou seja, sete em cada dez crianças estavam em condições de pobreza. Alberto Fernández legitimou a dívida fraudulenta com o FMI contraída por Mauricio Macri.

– E a ação da polícia a estas regiões?

Pois então, o gatillo fácil seguiu e segue existindo. E não é verdade que com o Kirchnerismo não tenha ocorrido. Se se entra na página da CORREPI – lá se pode ar, ano a ano, o número de mortos causados pelas Forças de Segurança durante o regime democrático. Se se quiser, se pode buscar as cifras de cada governo de turno. Por exemplo, a desocupação forçada das pessoas do povoado de Guernica, um lugar na província de Buenos Aires, se deu durante um governo kirchnerista37; Santiago Maldonado, Facundo Astudillo Castro, etecétera,

Há um sem-fim de nomes em uma lista enorme de assassinados durante a democracia (alguns desaparecidos como é o caso de Miguel Bru) e outros que sequer foram investigados, que os governos travaram o processo judicial. (…) Há coisas que parece que ninguém quer enxergar – sabemos dos 30 mil desaparecidos, mas ao longo destes anos de democracia houve uma porção de falências e fracassos, temos grandes dívidas em nossa democracia, e penso que se não nos dermos conta disto, o que se dá é que nos chega um Milei e não se sabe dizer o porquê de ele ter chegado. É como me disse outro dia meu filho – que é bastante jovem: “Se eles não têm qualquer direito, o que lhes vai faltar?”. Estamos falando de pessoas que não tem absolutamente nada.

– E essa gente está mobilizada ideologicamente por Milei/Villarruel? Te pergunto isto buscando traçar um paralelo com o caso brasileiro, em que o bolsonarismo avançou bastante no que diz respeito a esta penetração de base ideológica.

Sim, estamos próximos ao bolsonarismo neste sentido. Mas vamos ver o que irá ocorrer nos próximos meses, digo isto porque me pergunto como será quando as pessoas não conseguirem pagar a sua luz, quando não puderem comprar os medicamentos, quero ver como vai ser agora que já vai chegar o aumento do preço do gás, ou com as demissões em massa, o desemprego crescendo.

– E como está a questão do paramilitarismo?

Estamos às cegas neste sentido. Mas acredito que vá estourar. Mas vai estourar desde as bases porque os dirigentes estão apostando na ividade das pessoas, sejamos realistas – o peronismo está gestando a governabilidade para Milei, as Centrais operárias da CGT e as CTAs não estão fazendo absolutamente nada com relação a estas demissões massivas; os grêmios não estão convocando assembleias, estão fazendo o jogo de deixar ver até onde isto irá, é minha opinião particular; creio que eles querem seguir neste jogo como se fora uma aposta de que de tal forma eles, inevitavelmente, irão retornar de forma triunfante nas próximas eleições; não querem se prestar ao trabalho sujo, qual seria este trabalho sujo? Enquanto se seguir em acordos com o FMI – seja qual for o governo – que seja o tempo que vá determinando se será com um [Sergio] Massa ou com um Javier Milei, o que importa é que o ajuste saia, então que se deixe que as coisas sigam o seu curso tal como estão seguindo, que as coisas se ajeitem a sua maneira, e depois chegaremos; o tema principal para Cristina Kirchner, por exemplo, é que não se lhe obstrua os intentos com o lawfare, e isto não se dando, que siga como está a governabilidade; digo isto porque senão como se iria itir que este tipo [Javier Milei] leve adiante esta política de fome e de terra arrasada, de miséria planificada, de indiscriminada violência policial, de perseguição desatada aos protestos sociais, me entende? Isso se pode ver com as votações no Senado, por sorte conseguimos barrar a Lei Ônibus, mas se ela não ou foi por conta das manifestações massivas que promovemos durante três dias consecutivos em frente do Congresso37. Foram estocadas fortes que demos nos intentos de Milei. Mas não devemos nos iludir, estamos vivendo a um avanço em direção a um Estado bonapartista.

– Ou seja, se pode dizer, uma espécie de golpe de Estado.

Sim, um golpe de Estado institucional! Por isso o vejo tão semelhante aos processos que estão se dando na América Latina. No Brasil, creio que foi algo bastante parecido com isso. A democracia que experimentamos está restrita ao voto, e a maior parte da população não participa da vida democrática, não tem qualquer ingerência na coisa pública. Se alterarmos certas circunstâncias, foi o que vivemos aqui, em 2001, quando as coisas seguiam tal curso até que as economias da classe média foram tocadas, aí a coisa estourou. Agora, vejo que este barril de pólvora está nas mãos das gentes que já não tem mais fôlego para sequer sobreviver, e isto pode provocar uma explosão.

– Porém vá se saber em qual direção virá tal explosão, se ela se radicaliza à esquerda ou à direita…

São cenários possíveis. O que, com toda certeza irá se dar é uma forte repressão tal como ainda não experimentamos. Eles estão dispostos a fazer qualquer coisa contra nós.

– E talvez aí entre o papel mais específico de Victoria Villarruel, Patricia Bullrich…

Por isso é que é tão perigoso estar em pleno curso a Lei Antiterrorismo…

– Que autorizaria o uso interno das Forças Armadas como poder de polícia?

Não, isso é para os casos de narco criminalidade, mas se te acusam de terrorista… é algo muito vago. 

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500 dias do governo de Javier Milei e Victoria Villarruel – uma atualização 3n5n2

Em conversas por WhatsApp com Erika Lederer, lhe propus que traçasse um balanço analítico dos primeiros quinhentos dias do governo de Milei e Villarruel – afinal no que tange a análise de conjuntura de um processo em curso, nos seria de grande valia escutar o seu testemunho neste abril de 2025. Erika Lederer aceitou de imediato. Sigamos o seu depoimento na íntegra:

Estamos ante um governo que faz exatamente o que disse que iria fazer: um ajuste sobre as grandes maiorias trabalhadoras e às classes mais vulneráveis. Aplicam um sistema econômico similar ao denunciado por Rodolfo Walsh em sua Carta Aberta à Junta Militar38, ou seja, uma política de fome e miséria planificados a favor das transnacionais e interesses estrangeiros e, também, é claro, com relação ao FMI. Esse modelo de exclusão não funciona sem repressão. Temos um estado de recessão com milhares de pessoas despedidas de seus empregos, aproximadamente 45 mil apenas no que tange apenas aos funcionários públicos, enxugamento este que se estendeu ao setor privado também. Podemos perceber claramente que grande parte destas demissões atendem a um modelo discriminatório e de perseguição política para disciplinar a classe trabalhadora como um todo. Eu, pessoalmente, fui despedida do Ministério de Justiça por causa de meu ativismo em direitos humanos e minha atividade sindical. Já estava há onze anos neste trabalho. E o que se ou foi que meu diretor nacional, Juan Luce, me convocou a sua sala e me disse que havia lido todos os meus artigos jornalísticos, e de imediato eu lhe perguntei se estavam me despedindo por ser de oposição, e ele fez um gesto com a mão. O Ministério de Justiça foi esvaziado, foram 2.400 demissões. A Secretaria de Direitos Humanos que depende deste Ministério, e da qual dependem as políticas de Memória, Verdade e Justiça, aí se demitiu praticamente todos os trabalhadores, os que estavam, por exemplo, alocados em Centros de Memória – que são lugares onde não apenas se transmite a Memória, mas que fornecem provas judiciais aos juízos de lesa humanidade; esvaziaram a CONADI – organismo que auxiliava a que pudéssemos encontrar as crianças que foram sequestradas durante a ditadura; fecharam o Centro Cultural Haroldo Conti. Procuram apagar a Memória e entorpecer a Justiça com isso. 

Estas políticas de fome e de submissão ante o FMI não se pode levar adiante, como disse há pouco, sem uma feroz repressão. A Lei Antimáfia, o Protocolo ilegítimo de Patrícia Bullrich e a Lei Antiterrorismo, que é de 2011, estão sendo utilizadas contra todo àquele que intente se manifestar e que lute por seus direitos. Este governo pretende anular o direito constitucional de manifestação social. No ano de 2024, o advogado Matías Alfiere perdeu a visão de um dos olhos pela ação das Forças de Segurança. Os aposentados que se manifestam, pacificamente, todas as quartas-feiras, pelo aumento de seus soldos e pensões que não são suficientes para que possam subsistir, e sequer para comprar os seus medicamentos, tem sido ferozmente baleados, agredidos e submetidos a intoxicação por gás lacrimogêneo. Um rapaz da torcida organizada do Chacarita também perdeu a visão de um dos olhos quando acompanhava a uma das eatas dos aposentados. As detenções são inúmeras e gratuitas como se fosse uma verdadeira caça às bruxas e de forma completamente arbitrária. O fotógrafo Pablo Grillo – que foi baleado com uma cápsula de gás lacrimogênio, está entre a vida e a morte. Estamos diante de um avanço dos gatillos facilíssimos, como diria Herman Schiller, isso não é casual.

Além dos intentos econômicos que o governo pretende, e isso é importantíssimo, este governo pretende legitimar e sobrelevar as Forças Armadas e as Forças de Segurança de ontem e de hoje. Por um lado, fazem uma aberta apologia e reivindicação dos genocidas falando de uma suposta memória completa – quando bem sabemos que a única ‘memória completa’ é a que implica que abram os arquivos de 1974 a 1983 e que os genocidas rompam o maldito pacto de silêncio e digam o que fizeram; por outro lado, dão carta branca à repressão atual. São as duas caras da mesma moeda, sempre com o objetivo de serem servis ao Imperialismo e aos grandes interesses econômicos. 

Um dado que gostaria de ressaltar: muitos dos sobrenomes dos cúmplices civis da ditadura se encontram, hoje, em cargos do governo. Por exemplo, um tipo como Cordero na Secretaria de Trabalho – que era o antigo Ministério de Trabalho. Cordero trabalhava para Techint. E te vou contar algo: meu pai foi médico legista de Techint durante muitíssimos anos. Techint tinha um Centro Clandestino de Detenção, Tortura e Extermínio em Campana. Hoje, os premiam com um cargo estratégico no governo. Eu havia antecipado tal coisa em uma matéria, no ano de 2019, para Canal Abierto – ainda durante a era macrista, e na ocasião, disse o seguinte: ´Se trata do pagamento de favores pelos serviços prestados durante a ditadura’, e hoje insisto com tal ideia. Estão devolvendo os favores. Por isso, encontramos tais nomes e sobrenomes da época da ditadura nestes cargos nos dias de hoje. Além do quê, sabemos que nas causas judiciais não houve muitas condenações aos cúmplices civis, que é uma grande dívida que temos na democracia, como tantas outras. 

Uma questão que não quero deixar de mencionar é o papel cúmplice que está sendo jogado pela burocracia sindical – desmobilizando e acionando o freio às lutas, como se fora um balde de água fria a todas as lutas que, desde as bases, se organizam. Se o sindicalismo estivesse de pé e não de costas à classe trabalhadora, hoje estaríamos em outra situação. Apesar do que estou dizendo, estou convencida da força da classe trabalhadora, desde as bases e unificadas; pois este é o legado que nos deixaram outros lutadores que nos precederam. Convencida porque Nora Cortiñas nos disse que venceremos. As ruas são nossas, temos o legado das madres e das abuelas de Plaza de Mayo; a experiência do Cordobazo e da Argentina de dezembro de 2001. 

Lutar por preservar a Memória, conseguir Justiça e que mais genocidas sejam levados aos cárceres – que é o seu lugar; defender a história que tanto nos custou atingir e lutar por um mundo mais justo e equitativo, que inclua a todos – isso é o que não devemos perder de vista. Não se pode brigar por Memória, Verdade e Justiça sem lutar, hoje, por condições dignas para todos e para cada um dos cidadãos. Recordo que Hebe Bonafini dizia que a memória se atualiza e víamos isto em Norita que estava em todas as frentes de luta, ou seja, defender nossa Memória, pedir Justiça para que todos os genocidas sejam presos, porém, também, estar acompanhando os trabalhadores e as classes vulneráveis em suas demandas, e o espaço é a rua.

Antes de terminar, quero falar sobre o genocídio que está perpetrando o sionismo de Israel sobre o povo palestino: a condição humana está em jogo, não podemos denunciar o genocídio argentino e nos calar sobre o que está sofrendo a Palestina, este genocídio cometido por Israel com apoio armamentista ianque e com o continente europeu olhando para o outro lado. Necessitamos um cessar fogo permanente e de imediato. Estamos vivendo o pior infanticídio da história. Não deixemos nunca de levantar as bandeiras da condição humana, e há uma frase em que eu creio bastante que é de Albert Camus, a criatura é minha pátria39.

André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF)

Esse texto expressa a opinião do autor.

Notas:

  1.  A história da vida de Erika Lederer está descrita no livro de Guillermo Lipis:  No lo perdono – el testimonio de Erika Lederer, hija de un médico obstetra genocida. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2019. Vejamos este parágrafo em que Erika descreve o silêncio, a ausência de palavra na casa paterna, a casa de sua infância moldando o seu comportamento: “No ensino médio, me tornei quase autista, não falava com ninguém. Fazia esportes de alto rendimento, mas esportes individuais como atletismo ou natação, não fazia vínculos. Alguns companheiros me davam desenhos de caixões com pestanas. Eu estava me tornando pura pestana de tão magra era. Martín Puigserver, por exemplo, me entregava esse tipo de desenhos para ver se eu reagia porque pensava que eu estivesse morrendo (…). Me sentia impossibilitada de falar porque não era audível o que eu tinha a dizer. Me pergunto hoje se somos capazes de escutar e dizer” (p.46). Grifo nosso. ↩︎
  2.  Erika descreve a seu pai como de temperamento bipolar, extremamente violento e perverso, de corte ideológico nazista. Vejamos este trecho: “’O louco, a carícia e a metralhadora’, assim chamavam o meu velho nos diversos lugares em que ele transitava. Entendia isto, claramente, por seu temperamento temerário e bipolar (…). Irascível em sua arbitrariedade e pouco receptivo às diferenças, caracterizado como defensor da pureza de vá se saber qual raça, a que ele chamava de ariana (…); extrovertido, divertido, lustrado por fora e tão vazio de substrato e porquês. Trabalhador de sol a sol, depois de sua participação nas forças de desaparição e extermínio, fumante compulsivo e profundamente infantil na defesa do relato oficial que justificava a repressão e a eliminação dos direitos civis fundamentais e das vidas e dos corpos. ‘-Estão na Europa, eu costumava escutar na mesa durante as refeições, resposta não ingênua que me soava, primeiro, a indiferença, e depois, ao desprezo para com todas as vítimas do aparelho repressivo estatal. Não somente os desaparecia, os violava, torturavam, sequestravam, roubavam identidades, pessoas e bens, e além de tudo, ainda riam em deboche amesquinhado. Expressava o riso do abusador que impávido gozava enquanto te desafiava, te olhava fixo nos olhos e prosseguia enquanto a dor se expressava em lágrimas incontidas. Isso tem um nome preciso: perversão. Exercer domínio sobre a vontade do OUTRO que está indefeso, que não tem como reagir, que não dispõe de recursos nem do poder do capital” (p. 27-28). Grifo nosso. ↩︎
  3. Em uma de nossas conversas ao longo de já mais de um ano – desde que a entrevistei no dia 22 de março de 2024, Erika me enviou este seu poema, inédito, que transcrevo na íntegra, em espanhol: 
    “He soñado infinidad de veces/durante mi infancia/con grandes bolsas de basura negras/repletas de cadaveres/escondidas debajo del parqué del living. // He soñado tan repetidamente al rededor de los 9 y 10 años/esta pesadilla que aún hoy me angustia/debajo del parqué del living/una incontable cantidad de cuerpos/sin vida, sin caras y sin nombres. // ¿Puede la imaginación de um niño/presentir el horror/de los crímenes de su padre?  // Una pesadilla macabra/que me persiguió muchos años y/tengo tatuada en la tristeza/de mi memoria. // He soñado la respuesta/pressentido la Verdad/detrás de la oscura noche/que habitaba nuestro país. // Sueño de niña/presagio fatal.  // ¿Cabrán 30.000 muertos/en el living de la que fuera/mi casa?” ↩︎
  4.  Vejamos o que afirma Erika Lederer em sua entrevista a Daniel Satur: “Para mim sempre foi muito impactante que ele fosse obstetra, porque dar vida não tem nada a ver com tudo o que se ava ali. Isso é algo que me acompanhou durante muitos anos. Já sendo mãe, estava lendo o Nunca Más, e lembro que os abraçava forte com medo que eles me fossem arrancados”. IN: La Izquierda Diário, 23 de março de 2018. Link de o: https://www.laizquierdadiario.com/Erika-Lederer-Ser-hija-de-un-genocida-no-me-hace-victima-pero-puedo-aportar-a-la-verdad ↩︎
  5.  Em inúmeras de suas entrevistas e testemunhos, Erika Lederer descreve como tendo sido um ponto de inflexão em sua vida no que tange à morte da ‘hegemonia do relato paterno’ quando, aos nove anos de idade, perguntou a seu pai se ele havia matado alguém. Diante da resposta afirmativa de Ricardo Lederer, resposta esta seguida de sua justificação ideológica, Erika conta que algo nela havia se quebrado em definitivo.  ↩︎
  6.  São palavras de Erika: “Aos 25 anos eu abandonei a casa dos meus pais e superei os problemas de bulimia e anorexia. Foi automático. Em um mês, havia engordado, estava bonita. (…) Eu podia falar, eu tinha voz. Até este momento, se falava qualquer coisa, levava uma surra, houvesse ou não pessoas ao redor. Não havia jeito de eu poder me expressar. Creio que por isso eu vomitasse”. IN: LIPIS, G. No lo perdono – el testimonio de Erika Lederer, hija de un médico obstetra genocida. Op.cit. (p.54). Grifo nosso. ↩︎
  7.  Importante destacar que Ricardo Lederer, além de médico obstetra, segundo oficial comandante da maternidade clandestina de Campo de Mayo, participou dos voos da morte nos quais anestesiava os sequestrados políticos que seriam arremessados, com vida, dos aviões ao Rio da Prata. Em 2017, Erika Lederer prestou depoimento contra seu pai no processo que diz respeito às irregularidades do Batalhão 601, incluído na Mega Causa Campo de Mayo, sobre os voos da morte.  ↩︎
  8.  Aqui, outro poema inédito de Erika Lederer: “Espero los 9 meses/disfruto que la panza crece. // Espero los meses/tal vez sean 9/no sé qué día es/me picanean/temo por la panza que crece.  // Preparo el ajuar. // Me violan/me pegan patadas en la panza/me vuelven a picanear/¡hablá comunista!/¡decí, montonera, lo que sabes! // Son las 6 y/tengo contracciones/voy a parir/sé el nombre. //No sé qué hora es/me trasladan atada/de pies y manos/tengo contracciones/voy a ser mamá/sé su nombre y/tengo miedo/que me lo saquen.  /Soy mamá y/abrazo a mi gorrión/ le doy el pecho tíbio/calmo sus sollozos/lo miro a los ojos/veo sus manitos/huelo su cabecita. // Soy mamá/se llevan a mi hijo/¿que nombre le pondrán?/¿vivirá?/¿lo volveré a ver? // Me dan de alta de la clínica/nos vamos a casa. // Me sacan de la sala/hacia el próximo vuelo/me anestesian: el mar”. ↩︎
  9.  Para uma aproximação do que foram os levantamentos Cara Pintadas, na Argentina – suas pautas e objetivos, assim como as condições de possibilidade históricas nas que foram plasmados tais intentos golpistas, sugerimos a leitura dos seguintes tópicos do livro de Norberto Galasso, Historia de la Argentina Tomo II: Las vacilaciones de Alfonsín; la cuestión militar; hiperinflación y entrega del poder (p.543-549). Pelos menos dois documentários abordam o tema: Esto no es un golpe (2018), de Sergio Wolf (disponível na plataforma Cine.ar) e Semana Santa. La democracia en vilo (2018), de Mariano Sapetti – produzido pelo Canal Encuentro. Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=wN5YeH7Pa3o ↩︎
  10.  Cf. Poder Judicial de la Nación. Causa 4012. Caso 323. Folha 9159. Importante destacar a gentileza de Erika Lederer, Pablo Verna e Pablo Llonto em me facultar o o a tal documentação. Grifo nosso. ↩︎
  11.  Ainda em Juízo, Erika conta que algo que lhe fez despertar suspeitas com relação a Ricardo Lederer foi a amizade de seu pai com o General Ramón Camps, Chefe da Polícia de Buenos Aires (1976-1977) e, posteriormente, Chefe da Polícia Federal (1977-1979), um dos principais responsáveis pela repressão durante os anos do autointitulado Processo de Reorganização Nacional, condenado por delitos de lesa humanidade e destituído de seus cargos. Em 1990, foi indultado pelo presidente Carlos Menem, morrendo em liberdade no ano de 1994. Erika conta que seu pai seguiu fiel a esta amizade para com Ramón Camps até o falecimento deste. Sugerimos assistir ao Programa 60 minutos da TV Pública Argentina, um dos principais porta-vozes da ditadura empresarial militar, inteiramente dedicado ao Gal. Ramón Camps, em que ele disserta sobre a detenção de Jacob Timerman, diretor-chefe do Diário La Opinión. 
    Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=GOLh63q1tyg
    A entrevista foi conduzida pelo jornalista José Gomez Fuentes (apologista do regime de exceção) e contou com a participação do Capelão Christian Von Wernich, posteriormente condenado à prisão perpétua por sua participação nos crimes de lesa humanidade impetrado pelos genocidas militares. Dentre os temas abordados por Ramón Camps, podemos destacar: a) sua crítica à ‘politização de esquerda e infiltração marxista’ na ‘política dos Direitos Humanos’, espécie de argumento avant la lettre das pautas de Memória Completa encabeçada por Victoria Villarruel; b) a qualificação do que se vivera nos anos 1975-77 como sendo uma guerra contra a subversão “com todas as características de uma guerra na qual, por suposto, há combates, mortos, feridos e desaparecidos, e que há também os heróis, há gente que combate e gente que se entrega”; c) a desqualificação do ‘inimigo subversivo’ como sendo um projeto de infiltração ideológica estrangeira no ataque à integridade da família, da nação argentina, e da propagação da drogadição. Este é o tom da entrevista – conduzida com efusiva adesão por José Gomez Fuentes. Vejamos o trecho final em que Ramón Camps explica o porquê da ‘guerra contra a subversão’: “Se você me permite, eu o quero explicar o porquê lutamos, para quê lutamos. Evidentemente não lutamos para que esta luta se esgotasse no restabelecimento da ordem – porque o restabelecimento da ordem era indispensável. Lutamos por uma outra série de coisas: lutamos para que os argentinos pudessem se integrar; lutamos para que a Argentina pudesse transcender; para que o homem comum, o cidadão comum tivesse a certeza de que quando regressara a sua casa ia encontrar a sua mulher e seus filhos e ia poder seguir trabalhando, se esforçando para esta Argentina que estamos querendo forjar todos; lutamos para que aqui houvesse paz, que esta luta não volte a se repetir nunca mais; para que os Timerman não possa voltar a aparecer; lutamos pela grandeza da Nação; lutamos por coisas totalmente tangíveis que o homem tem que tocar, não lutamos por declamações vãs nem falsas, lutamos sem nenhum interesse pessoal; lutamos, e me perdoe se inclua você, porque me senti sempre acompanhado por todo o povo argentino, lutamos pelo povo argentino, porque foi uma luta do povo argentino e não creio que nenhum argentino haja sido excluído dessa luta e aliás não posso borrar de minha memória os jovens de dezoito, dezenove anos que foram os soldados que tivemos em nosso exército, na marinha, na aeronáutica, não posso me esquecer dos homens da polícia, homens mais velhos que nos acompanharam e se entregaram se pedir nada toda a sua dedicação e sua força com uma vontade de vencer porque nós nos consideramos melhores do que os marxistas, lutamos por uma Pátria que é a que aspiraram os nossos próceres e que temos que concretizar e esta Pátria somente conseguiremos concretizar realizando o enorme esforço, em forma conjunta e mancomunada porque senão isso não tem razão de ser, não lutamos para entregar nada, lutamos para a grandeza nacional, lutamos por todos os argentinos”. A Carta de Rodolfo Walsh à Junta Militar (1977) desmente os argumentos de Camps; mas não apenas a carta; o relatório Nunca Más da CONADEP também o faz; assim como, a entrega da riqueza comum argentina na forma da sua desindustrialização apregoada pelos intentos financeiros dos cartéis e monopólios transnacionais atentam em contrário a esta retórica – o aumento desmesurado dos cordões de pobreza e miséria; a elevação do custo de vida e dos índices de mortalidade infantil; o êxodo de uma quantidade enorme de cidadãos argentinos, sem contar os desaparecidos, mortos, torturados; o roubo de bens e de propriedade fartamente documentados; o roubo e sequestro de crianças nascidas em cativeiro; a pavimentação ideológica e subjetiva como condição ótima para a implementação das políticas neoliberais dos anos 90 – todos estes elementos depõe em contra os argumentos de Ramón Camps. ↩︎
  12.  Digo de nota é o texto intitulado “Historias desobedientes o hijos de genocidas”, escrito por Mario Santucho, filho de Mario Roberto Santucho, um dos fundadores e Secretario Geral do Partido Revolucionário de los Trabajadores (PRT) e Comandante do Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP). Mario Santucho descreve a Historias Desobedientes como: “Uma nova voz pública em relação a memória política dos Setenta. O agrupamento despontou em cena no dia 03 de junho/2017 durante a marcha Ni una menos com uma bandeira que também pegava onde lhes dói: ‘Filhas e filhos de Genocidas’”. Interessante que tal juízo surja do filho do principal dirigente da organização político-militar marxista-guevarista morto pelos agentes da repressão de Estado. Santucho qualificará a emergência desta ‘nova voz coletiva’ como ‘um desvio ético portador de uma intensa dignidade. Como se fora o mais normal e não algo excepcional’. Santucho aponta que a força da incongruente irrupção dos desobedientes – filhos e filhas de genocidas que rechaçam a ação repressora e funcional de seus pais em serviço a agenda planificada do terrorismo de Estado – como que a se desgarrar de um ‘magma inquietante, irredutível e concorrente” de outros organismos e agrupações de filhos e filhas de genocidas que não apenas justificavam a seus atos, reivindicando-os, como se punham a uma ordem do dia renovada no sentido de atuar em benefício de suas pautas circunstanciais. Dentre estes organismos, Mario Santucho irá listar a Associação de Familiares e Amigos dos Presos Políticos da Argentina (Afyappa), com Cecilia Pando à cabeça, surgido em 2006; a Associação Argentina pela Memoria Completa, presidida por Alberto Solanet; a fundação do Foro de Buenos Aires em defesa do patriotismo, da coragem e solidariedade, em 2014; o Centro de Estudos Legais sobre o Terrorismo e suas Vítimas (CELTyV), presidido por Victoria Villarruel, que reproduzia, em similitude porém às avessas o nome do CELS, um dos organismos de direitos humanos mais vigentes; a Associação de Familiares e Amigos de Vítimas do Terrorismo na Argentina, dirigido por Silvia Ibarzábal; A Força dos dignos, uma rede de familiares do interior do país; Os Valentes de Formosa (2013) e A Escuelita de Manchalá (2015), sobre os soldados mortos em operações guerrilheiras; e por fim, Pontes para a Legalidade (2015), um grupo de familiares de imputados em causas de Lesa Humanidade que vem denunciando, desde 2008, como Filhos e Filhas de Presos Políticos, irregularidades e violações aos direitos humanos sofridas por seus pais e avós durante os processos judiciais por crimes de Lesa Humanidade. Aníbal Guevara, filho de um tenente do Exército, é o principal expoente deste coletivo. 
    Link de o: https://revistacrisis.com.ar/notas/historias-desobedientes-o-hijos-de-genocidas ↩︎
  13.  Descrevemos aqui este trecho longo de um importantíssimo e pertinente debate sugerido por Daniel Feierstein: “Que papel jogam neste cenário os que hoje se preocupam por ‘conjurar’ a ‘violência política da esquerda’? Por que encontram tanto espaço midiático para expressar suas ‘críticas’ ou ‘autocríticas’? Por que essas ‘críticas’ se preocupam tanto de não mencionar jamais a violência estrutural que desatou a resposta popular, os motivos que os levaram a decidir, com todos os erros ou acertos que possa estar implicado nesta decisão, aumentar a intensidade da violência ante regimes que havia proscrito por décadas a possibilidade democrática em nosso país e que recorriam a ditaduras para acrescentar brutalmente a desigualdade? Seria muito proveitoso poder recuperar essa discussão dos anos 60 e 70 no movimento popular argentino: a que opunha àqueles que não viam outra saída que desatar uma ofensiva revolucionária frente àqueles outros que sustentavam a necessidade de continuar uma atividade nas bases, sindical, com greves, lutas nas ruas, ocupação de estabelecimentos, em síntese, o que chamavam de ‘resistência defensiva’. Discussão que atravessou tanto às organizações peronistas como a todos os grupos de esquerda e que permeou também a academia de seu momento. Discussão que assumia como elemento fundamental do debate o reconhecimento de que ambas as opções implicavam respostas distintas e complexas ante o avanço feroz da violência estrutural e repressiva e seu intento de transformar brutalmente a distribuição de renda na sociedade argentina. E que buscavam avaliar os prós e os contras em cada contexto (…). Porém não. As autocríticas, os debates, as discussões que promovem estas vozes políticas e acadêmicas não buscam nos enriquecer com um intercâmbio legítimo como o apontado, senão que percorrem o caminho da pergunta naif: se pode matar? Como se fossem uma espécie de Aristóteles do século XXI, plantados em uma imaginária sacada de onde nos vociferam eticamente, em abstração de toda e qualquer condição histórica. E, paradoxalmente, o ‘matar de fome’, o ‘matar por enfermidades que poderiam ser evitadas’, o ‘matar para aumentar a taxa de lucro’ não figuram neste vocabulário. Há somente duas violências para tais filósofos pseudo proféticos: a repressiva e a insurgente. E as duas são igualadas com o novo conceito de moda numa banal historiografia: violência política”. IN: FEIERSTEIN, D. Los dos DEMONIOS (recargados). Buenos Aires: Marea, 2018 (p.82-83). Grifo nosso. ↩︎
  14. Vejamos este trecho esclarecedor do documento intitulado “O Avanço do neofascismo e os desafios da esquerda na América Latina”, Dossiê nº79 – Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, de agosto de 2024: “Durante a crise econômica de longo prazo, iniciada em 2007, assistimos na região a uma série de golpes de Estados e/ou processos intencionais de desgastes de governos de esquerda e progressistas que tinham algum compromisso com políticas sociais. Esses golpes foram realizados pelas classes dominantes nacionais, pelo capital internacional – com participação do governo dos EUA – e contou com o apoio dos grandes meios de comunicação internos. Após a crise econômica, era como se o cobertor houvesse encurtado e, para os objetivos do capital financeiro, não havia mais espaço para os governos progressistas se manterem no poder com suas políticas sociais. Apesar de alguns países terem conseguido manter uma coesão social e utilizar o Estado para amparar os mais necessitados, a ordem era mais uma rodada de aprofundamento do neoliberalismo, com reformas trabalhistas, previdenciárias e a adoção de políticas econômicas ultraliberais, todas elas conformando em um aprofundamento da superexploração do trabalho. (…) Como exemplo deste movimento, podemos destacar os golpes contra Manuel Zelaya, em 2009, em Honduras; Fernando Lugo, em 2012, no Paraguai; Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil; Evo Morales, na Bolívia, em 2019; a prisão de Luíz Inácio Lula da Silva, em 2018, no Brasil; e a perseguição política e a tentativa de homicídio contra Cristina Kirchner, na Argentina, em 2022. Este processo geral de rearticulação da direita na região apresentou muitos fatores em comum como o uso de uma combinação de meios legais e ilegais e a colocação da batalha de ideias – ou ‘batalha cultural’ – na vanguarda da estratégia política. Mas ela assumiu características distintas em cada país, e até mesmo em cada estágio ou momento político específico dentro do mesmo país. (…) Na Argentina, por sua vez, o triunfo eleitoral de Mauricio Macri, em 2015, aprofundou o uso da justiça como ferramenta política para a perseguição de seus oponentes políticos, em especial contra Cristina Kirchner. (…) Milei pretende refundar a Argentina com o objetivo declarado de ‘acabar com o populismo’. Para isso, todas as iniciativas do governo visam a perda de direitos trabalhistas e sociais para a maioria da população, a ‘desregulamentação dos mercados’ para favorecer as grandes empresas – em especial as grandes corporações estrangeiras – e a redução do papel do Estado na economia como um todo, por meio da privatização de empresas públicas e do desmantelamento de quase todas as políticas de desenvolvimento social e cultural” (p.12-15). 
    Link de o: https://thetricontinental.org/wp-content/s/2024/08/20240812_D79_PT_Web-1.pdf ↩︎
  15.  Cf. Argentine: mon père, ce tortionnaire, par Mathilde Guillaume, Liberatión, 19 juin 2017. Link de o: https://www.liberation.fr/planete/2017/06/19/argentine-mon-pere-ce-tortionnaire_1578033/ ↩︎
  16.  Cf. Identidad y vergüenza. Hijos de repressores: del dolor a la acción. Por Erika Lederer. IN: Revista Anfíbia, 24 de mayo de 2017. Link de o: https://www.revistaanfibia.com/hijos-represores-del-dolor-la-accion/ . Sugerimos também a entrevista de Erika Lederer e María Victoria Moyano, a neta recuperada n.53. Programa Podemos Hablar. Telefe. 
    Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=eQ2x1vBMUU0 ↩︎
  17. Sobre o caso de Mariana Dopaso, vejamos os argumentos apresentados por ela quando da solicitação de mudança de sobrenome, em novembro de 2014, em um Tribunal de Família da Capital Federal: “Depois de ser obrigada a estar permanentemente confrontada com minha história por meio da ação de distintas pessoas que – repugnando os atos desprezíveis e sinistros de meu pai, me tratavam como seu eu fosse uma espécie de apêndice dele, e não um sujeito único, autônomo e irrepetível, o que me descentrava de minha íntima convicção – que é terminantemente contrária à desse progenitor e seus crimes (…). Sendo sempre questionada e tendo sofrido inúmeras dificuldades simplesmente por portar o sobrenome que solicito que me seja suprimido, uma vez que ele ressalta a sua repugnante história, sinônimo de horror, vergonha e dor. Não há nem nunca houve absolutamente nada que nos unisse, de tal modo que resolvi com esta solicitação dar um ponto final e definitivo à carga enorme que para mim significava arrastar um sobrenome manchado de sangue e de horror, alheios à constituição de minha pessoa. Porém, além do que exponho, acrescento que minha ideologia e conduta foram e são absoluta e decididamente opostas as suas, não existindo o mais ínfimo grau de coincidência com o que está acima disposto. Porque nada me assemelha a este genocida”. Cf. Mariana, la hija de Etchecolatz – Marché contra mi padre genocida, por Juan Manuel Mannarino. IN: Revista Anfíbia, 12 de maio de 2017. Link de o: https://www.revistaanfibia.com/marche-contra-mi-padre-genocida/ . Sobre o caso de Analía Kalinec, foi já durante a vida adulta que ela diz ter se dado conta dos vínculos de seu pai com o genocídio levado a cabo pelo terrorismo de Estado. Vejamos o que conta Analía: “Meu pai nasceu em 1952, no seio de uma família de classe média que tinha dificuldades econômicas. Ele abandonou os estudos no terceiro ano do ensino médio e decidiu entrar na Polícia Federal por volta de 1973, muito jovem. Nasci na ditadura e sempre soube que meu pai era policial, não nos perguntávamos o que ele fazia ou deixava de fazer. Em casa, ele era um pai muito presente, mas nunca perguntei nada a ele. Éramos uma ‘família típica’, que se reunia para comer churrasco, ir ao clube da polícia e pescar… Meu pai era o pai provedor, muito querido, muito respeitado dentro de casa. Nós éramos quatro irmãs e vivíamos na nossa bolha. Depois, fomos nos casando e tendo filhos, como esperavam de nós. Fui a última das quatro, casei-me com apenas 22 anos… imagine! E a vida era assim. Até o ano de 2005. Era o último dia de agosto. Eu estava em casa quando recebi uma ligação. Era minha mãe: ‘Olha, não entre em pânico, seu pai está preso. Mas fique tranquila, ele vai sair (de lá)’. Até essa ligação, eu nunca havia relacionado meu pai à ditadura, nem de longe… nem de longe. No dia seguinte àquela ligação, visitamos meu pai na prisão. E ele nos disse que não precisávamos acreditar em nada, que muitas mentiras seriam ditas, mas que ele não tinha nada a se arrepender. Que ele tinha saído para lutar em uma guerra e que isso estava acontecendo agora porque ‘revanchistas de esquerda’ chegaram ao poder. Não entendi nada, para mim a ditadura era algo do ado. Eu estava totalmente alheia ao que estava acontecendo no país. (…) Os três primeiros anos foram de negação absoluta. De entender a ditadura, entender a luta das Mães e Avós (da Praça de Maio) e sentir empatia com elas, mas de dizer que meu pai não teve nada a ver com isso. Que foi um erro, que os julgamentos estavam indo bem, mas que estavam errados em relação a meu pai. Até que, em 2008, eles levaram o caso dele a julgamento, e comecei a pensar que o que meu pai estava dizendo não era bem verdade. Eu li o processo, que até aquele momento eu não tinha lido. Li com muita velocidade e pedindo para ‘que o nome dele não apareça, por favor, que o nome dele não apareça’. Não queria pular nenhuma linha para ter certeza de que não havia perdido nada, e de repente apareceu…Kalinec. Lembro claramente daquele momento. (…) Eu sabia que chamavam ele de Doutor K porque ele havia me contado, mas depois negou. Uma vez perguntei por que, e ele me disse que era chamado de doutor porque sempre foi muito correto e parecia um advogado”. Em 2010, Eduardo Emilio Kalinec foi condenado a prisão perpétua por homicídio qualificado, tortura e privação ilegítima de liberdade. Ele havia atuado no chamado Circuito ABO que diz respeito às siglas dos centros clandestinos de detenção Atlético, Banco e Olimpo. Descrito pelo testemunho de inúmeras de suas vítimas como sendo um tipo extremamente frio, cruel e violento. Destacamos aqui trecho do depoimento de Ana María Careaga que fora sequestrada quando tinha 16 anos, ela estava grávida de três meses: “O Doutor K me chutava toda vez que me via no banheiro. Ele gritava comigo porque eu me recusava a dizer que estava grávida: ‘Você quer que eu abra suas pernas e te faça abortar?’”. Cf. Meu pai, o genocida: as filhas de torturadores na Argentina que romperam silêncio sobre ‘segredo familiar’, por Valeria Perasso. IN: BBC News Brasil, 11 de fevereiro de 2020. Link de o: https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/portuguese/geral-51398365. Ainda sobre o caso de Analía Kalinec, sugiro o curta documental, La Hija indigna (2018), direção: Abril Dores Portaluppi. 
    Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=KTDg0akwWck ↩︎
  18.  Eis o trecho de Nunca Mas a que se refere Erika Lederer: “O Dr. M.S. permaneceu no Serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Campo de Maio até 1980 e destacou, em sua declaração, que está quase seguro que naquele ano ainda continuavam ali os casos de NN [pacientes sem identificação: ningún nombre] grávidas. Na Ginecologia, todos eram médicos civis tal qual em Obstetrícia, com exceção do Major Caserotto já mencionado e de outro médico militar que esteve presente até 1978 e que tinha a pretensão de ‘melhorar a raça’ e que era uma pessoa muito exaltada e excitada e com relação ao qual o Dr. M.S. tinha referências como ativo participante da luta contra a subversão. IN: Nunca Mas – Informe de la Comisión Nacional sobre la desaparición de personas. Eudeba: Buenos Aires, 2018 (p.311). Grifo nosso. ↩︎
  19.  Entrevista a Erika Lederer por André Queiroz, em Buenos Aires, dia 22 de março de 2024. Grifo nosso. ↩︎
  20. Importante destacar no livro de Guillermo Lipis, o capítulo 8 – intitulado De nazis, médicos y represores, no qual o autor chama atenção para o aporte realizado por inúmeros profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos etc.) que atuaram, direta ou indiretamente, a serviço do terrorismo de Estado argentino. Lipis evoca o trabalho desenvolvido pela organização não governamental Médicos com Memória no levantamento de dados que, não apenas procurem nomear a estes cúmplices do genocídio, mas a mapear a logística sanitária que foi construída para colaborar com o plano de extermínio. Segue um trecho do depoimento do médico Carlos Ferreyra, coordenador geral da organização, citado por Guillermo Lipis em seu livro: “(…) desde a assistência para a aplicação de tortura a milhares de sequestrados e presos nos mais de 500 centros de detenção clandestina detectados; ou no auxílio clínico na recuperação de torturados e moribundo para que continuassem a ser torturados por seus carrascos; ou na atuação no parto a milhares de grávidas algemadas ou amarradas nos pés e pernas em centenas de maternidades clandestinas, em hospitais universitários ou municipais; ou na istração de drogas anestésicas para facilitar os voos da morte; como também na feitura de falsos laudos forenses de corpos não identificados em morgues oficiais ou clandestinas, ou na descrição e de certidões de nascimento e de óbito adulteradas, ou mesmo nos préstimos para facilitação de apropriação de identidades formalizando certificações falsas de paternidade e maternidade”. Ferreyra acrescentará que [até o ano de 2019] foram identificados “mais de 800 médicos civis e militares, centenas de enfermeiros, e dezenas de psicólogos partícipes da implementação do terror na Argentina, entre 1976 e 1983”. IN: LIPIS, G. No lo perdono – el testimonio de Erika Lederer, hija de un médico obstetra genocida. Op.cit. (p.130-131). Também, Cf. La pata sanitária del terror estatal, por Ailín Bullentini. Página12, 16 de abril de 2012. Link de o: https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/diario/elpais/1-191951-2012-04-16.html Ver também a curta entrevista de Carlos Ferreyra em Visión Siete: Informe especial/ Médicos por la Memória: https://www.youtube.com/watch?v=EU6_3mxHOow  – Importante destacar dois pontos levantados por Carlos Ferreyra: a) o pacto de silêncio vigente entre os profissionais de saúde – tal como o mencionado entre os militares; b) a construção de um mercado privado de saúde que cresceu de forma inusitada durante o autointitulado Processo de Reorganização Nacional. ↩︎
  21.  Mario Roberto Santucho foi assassinado no dia 19 de julho de 1976, em Villa Martelli, por uma patota militar que invadiu sua residência. Sugerimos o documentário intitulado Santucho… todavia. Dir: Lucio García e Camilo Cagni, 2010. Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=hvVY6F–sEE Sobre PRT/ERP, sugerimos a trilogia documental Gaviotas blindadas, historias del PRT-ERP. Links de o: 
    https://www.youtube.com/watch?v=HGciTxTxECw ; https://www.youtube.com/watch?v=6FbmofT_1kU ; https://www.youtube.com/watch?v=kxolw_U4Vvs&t=1128s (1ª., 2ª. e 3ª partes, respectivamente). ↩︎
  22.  Sobre o Massacre de Trelew ocorrido no dia 22 de agosto de 1972 durante a ditadura empresarial militar liderada àquela ocasião pelo Gal Alejandro Agustín Lanusse, indicamos o livro de Francisco Paco Urondo, La Pátria Fusilada. Buenos Aires: Libros del Náufrago, 2011 – que é uma longa entrevista com os três sobreviventes do massacre, María Antonia Berger, Alberto Miguel Camps e Ricardo René Haidar realizada por Paco Urondo, no cárcere de Villa Devoto no dia 24 de março de 1972, um dia antes do indulto presidencial aos presos políticos pelo governo de Héctor Cámpora. Sugerimos também a fabulosa obra de Roberto Baschetti, Trelew: 1972 – 22 de agosto – 2022 – a cincuenta años de la masacre. Buenos Aires: Jironesdemivida, 2022 – uma rigorosa compilação de documentos, notas de imprensa, testemunhos, cartazes e ilustrações. No que tange ao audiovisual, sugerimos as obras: Ni olvido ni perdón. Dir: Raymundo Gleyzer, 1972. Link de o: https://www.youtube.com/watch?v=tTdpMygZGW8 e o documentário mais recente: Trelew – la fuga que fue masacre. Dir: Mariana Arruti, 2004. Link de o:
    https://www.youtube.com/watch?v=Bm1A4eDkbAU ↩︎
  23.  Entrevista a Erika Lederer por André Queiroz. Grifo Nosso ↩︎
  24.  Vejamos este trecho de Jorge Federico Watts, membro da Comissão de familiares, sobreviventes e companheiros das vítimas de Vesuvio: “O Vesuvio, junto a ESMA, traz consigo o triste privilégio de ser um dos campos de concentração que no perímetro da Capital Federal e da Grande Buenos Aires teve enorme atividade. (…) O edifício era do Serviço Penitenciário Federal, e foi utilizado como lugar de sequestro e tortura desde o mês de agosto de 1975, sendo a partir do dia 24 de março de 1976, comandado pelo Primeiro Corpo de Exército, funcionando até outubro de 1978. (…) Seu primeiro chefe foi o prefeito Alberto Neuendorf, ou melhor Neuman ou ainda, o Alemão, chefe de Inteligência do Serviço Penitenciário Federal, substituído em 1976 pelo então Major Pedro Alberto Durán Saenz, ou melhor Deltta e, ao final de 1977, este foi substituído por outro oficial do Primeiro Corpo de Exército, apelidado de El Francês. Estiveram sob responsabilidade direta dos Generais Suarez Mason e Sasiaiñ, e o controle dos prisioneiros sempre esteve a cargo do pessoal de inteligência do Serviço Penitenciário Federal. Cf. Link de o: https://condor-atlanta.org/wp-content/s/2024/03/1-CCD-El-Vesubio.pdf ↩︎
  25.  Atentemos a trechos do artigo “Acindar y Techint – militarización extrema de la relación laboral”, escrito por Victorio Paulón, delegado sindical do grênio dos metalúrgicos, no que diz respeito aos casos de cumplicidade econômica com o terrorismo de Estado; Paulón destaca que não se trata de elucidar os casos do avanço monopolista privado no setor siderúrgico destacando tão somente a colaboração e a cumplicidade de Acindar e Techint com o regime militar de exceção na Argentina, mas de destacar ‘a planificação e o protagonismo empresarial no Terrorismo de Estado’. Nos termos de Paulón: “O desenvolvimento da história da indústria siderúrgica na Argentina explica também a história política do país. Julgar a cumplicidade empresarial em termos de delação de ativistas sindicais, de demissões, de reduções salariais ou de perseguições é somente uma parte do que ocorrera, visto que se deve acrescentar a análise da planificação e execução do plano econômico que determinou por décadas o perfil social, econômico do país. Deve-se também assinalar que a cumplicidade civil ao ocorrido entre o 24 de março de 1976 e o 10 de dezembro de 1983. Na etapa previa ao golpe, o Conselho Empresarial Argentino (CEA), de que ambas as empresas formavam parte, via cambaleante o governo peronista que havia perdido seu rumo no dia seguinte à morte de Perón, quando sua viúva Isabel Martínez assumiu a presidência do país. Um verdadeiro plano articulado a crise de governabilidade crescente e o aprofundamento da repressão levaram inevitavelmente ao golpe de Estado porque, entre outras coisas, assim o impulsionavam esses setores empresariais”. No caso de Acindar, conformou-se um centro clandestino de detenção no interior de sua planta industrial, custeado pela empresa, se autorizando a ocupação por um destacamento da Polícia Federal, desde o conflito laboral de 1974 em diante. Sigamos este outro parágrafo de Victorio Paulón: “Durante toda a greve de 1975, Acindar manteve uma postura rígida, não permitiu nenhum tipo de acordo com os grevistas e apostou fortemente na derrota do movimento, preparando as condições para a represália posterior. As várias centenas de demissões tão logo encerrada a greve, e os sequestros e assassinatos de trabalhadores identificados com a condução encarcerada dão conta claramente da cumplicidade ativa da empresa”. E para sintetizar, vejamos: “É importante observar este comportamento empresarial no ano anterior ao golpe de 1976. O crescente protagonismo patronal nas medidas de boicote ao declinante governo peronista e a invocação permanente ao restabelecimento da ordem e da autoridade do Estado se repetiam diariamente como litanias que incitavam a interrupção do processo institucional. Estes empresários não foram convocados no dia seguinte do golpe para colaborar, mas antes, eles foram parte da preparação, da execução e da aplicação de um plano econômicos que liquidou o segundo processo de industrialização por substituição de importações. Não se trata de ações isoladas, mas de um plano sistemático de assalto ao poder e reengenharia social, econômica e política”. IN: VERBITSKY, H. & BOHOSLAVSKY, J.P. Cuentas Pendientes – los cómplices económicos de la ditadura. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2013 (p. 211-212 e 214). Grifo nosso. ↩︎
  26.  Para uma aproximação dos trabalhos da CORREPI, assim como da denúncia dos casos de violência policial e institucional sobre a forma do gatillo fácil, Cf. https://www.correpi.org/  ↩︎
  27.  Sobre a dupla desaparição por sequestro de Jorge Julio López, a primeira em 27 de outubro de 1976 durante a ditadura empresarial militar. A segunda desaparição se deu quando do período em que Julio López testemunhava nos julgamentos de Lesa Humanidade, ocorrendo em pleno período de democracia parlamentar, no dia 18 de setembro de 2006. Cf. https://unlp.edu.ar/institucional/ddhh/a-15-anos-de-la-segunda-desaparicion-de-jorge-julio-lopez-20718-40718/ ↩︎
  28.  Atentemos a este parágrafo de Horacio Verbitsky e Juan Pablo Bohoslavsky do texto “Terrorismo de Estado y economia – de Núremberg a Buenos Aires”: “A profunda redistribuição regressiva da renda em prejuízo da classe trabalhadora (a participação dos trabalhadores na renda nacional ou de 43% em 1975 a 22% em 1982) e a reconfiguração, redução e concentração do setor industrial que se deu durante a ditadura foram possíveis graças a uma efetiva repressão do movimento operário. Os trabalhadores que sobreviveram tiveram que desempenhar seus ofícios, em troca de um magro salário, literalmente com os fuzis apontados para eles. A militarização das grandes indústrias argentinas e a consequente repressão sistemática para disciplinar aos trabalhadores e seus representantes implicaram não apenas a conivência, mas um ativo envolvimento das empresas que, por sua vez, se viram fortemente beneficiadas pela redução dos direitos trabalhistas. Não somente se tratava de eliminar o inimigo interno, mas também de refundar um modelo produtivo baseado na espoliação violenta dos trabalhadores”. IN: VERBITSKY, H. & BOHOSLAVSKY, J.P. Op.cit. (p.19-20). Grifo nosso. ↩︎
  29.  Sobre o tema Memória Completa, ver a matéria “Los Centuriones de la memoria completa”, por Raúl Arcomano. IN: Crisis, 23 de março de 2017. Link de o: https://revistacrisis.com.ar/notas/los-centuriones-de-la-memoria-completa  ↩︎
  30.  Muito distinto deste posicionamento ético de Erika Lederer e dos filhos e filhas desobedientes, vejamos esta matéria “Las reuniones secretas de Victoria Villarruel con 10 genocidas condenados por desapariciones, violaciones y robos de bebés”, por Ari Lijalad e Franco Mizrchi. IN: El Destape, 29 de setembro de 2023. Link de o: https://www.eldestapeweb.com/politica/victoria-villarruel/exclusivo-las-reuniones-secretas-de-victoria-villarruel-con-10-genocidas-condenados-por-desapariciones-violaciones-y-robo-de-bebes-20239291690 ↩︎
  31.  Destaque-se o relatório sobre a situação repressiva nacional em 2024, ou seja, durante o primeiro ano de mandato presidencial de Javier Milei e Victória Villarruel, e sob os protocolos de exceção firmados pela Ministra de Segurança Patrícia Bullrich. Link de o: https://www.correpi.org/2025/archivo-2024-represion-tortura-y-muerte-bajo-el-regimen-de-milei/ ↩︎
  32.  Sobre Eduardo Marcelo Villarruel, Cf. “Quién era el padre de Victoria Villarruel: un militar que se jactava de su rol en la represión”, por Luciana Bertoia. IN: Página12, 02 de abril de 2024. Link de o:
    https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/590312-quien-era-el-padre-de-victoria-villarruel-un-militar-que-se- ↩︎
  33. Cf. “Los vínculos de Victoria Villarruel con Alberto ‘Gato’ González, un torturador de la Esma”. IN: Prensa Obrera, 25 de março de 2024. Link de o: https://prensaobrera.com/libertades-democraticas/los-vinculos-de-victoria-villarruel-con-alberto-gato-gonzalez-un-torturador-de-la-esma 
    Segundo as advertências levado à cabo pelo Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), tradicional organismo de Direitos Humanos, os intentos de Villarruel se articulam segundo alguns eixos: a) levantar a pauta da ‘reconciliação’ em contrafação aos juízos; b) estigmatizar o processo de justiça como se se tratasse de um ato de revanchismo; c) converter por meio de uma ‘forçada ressignificação’ aos condenados, processados e imputados por crimes de lesa humanidade em vítimas; d) relativizar o terrorismo de Estado e instalar uma agenda de ‘verdade completa’. Cf. “Los Centuriones de la memoria completa”, por Raúl Arcomano. IN: Crisis, 23 de março de 2017. Link de o: https://revistacrisis.com.ar/notas/los-centuriones-de-la-memoria-completa ↩︎
  34.  Cf. “Dinosaurios vs. Libertarios: la pelea de la ultraderecha y los negacionistas”, por Luciana Bertoia. IN: Página12, 26 de julho de 2023. Link de o: https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/571374-dinosaurios-vs-libertarios-la-pelea-de-la-ultraderecha-y-los  ↩︎
  35.  Erika Lederer se refere a um ato encabeçado por Victoria Villarruel junto ao parlamento portenho, em 3 de setembro de 2023. Cf. “Villarruel contra los organismos de DDHH, Ya no les tenemos ningún miedo”. Link de o: https://www.letrap.com.ar/politica/dos-demonios-tension-el-centro-porteno-un-acto-la-libertad-avanza-n5402880  ↩︎
  36.  Sobre o fechamento da principal agência de notícias públicas da Argentina e a dispensa laboral de seus funcionários provocada pelo arbítrio autoritário do governo de Javier Milei/Victoria Villarruel, Cf. “El Gobierno cerró la agencia de noticias Télam y los empleados recibieron la ‘dispensa laboral’. IN: DIARIO UNO, 04 de março de 2024. Link de o: https://www.diariouno.com.ar/politica/el-gobierno-cerro-la-agencia-noticias-telam-y-los-empleados-recibieron-la-dispensa-laboral-n1301950  ↩︎
  37.  Sobre a violência desta desocupação de cerca de 2.500 família num terreno de cerca de 150 hectares na província de Buenos Aires, Cf. “Argentina: se prorroga desalojo de ocupación urbana donde viven 2.500 famílias”. IN: Brasil de Fato, 05 de outubro de 2020. Link de o: https://www.brasilanovademocracia-br.atualizarondonia.com.br/2020/10/05/argentina-se-prorroga-desalojo-de-ocupacion-urbana-donde-viven-2-500-familias/  Cf. “La policía desalojó el prédio de Guernica”. IN: Pagina12, 29 de outubro de 2020. Link de o: https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/302498-la-policia-desalojo-el-predio-de-guernica-enfrentamientos-co  ↩︎
  38.  Sobre as massivas manifestações populares em frente ao Congresso contra o avanço da Lei Ônibus, Cf. “Ley Ómnibus: las fotos de la represión en las afueras del Congreso”. IN: Pagina12, 31 de janeiro de 2024. Link de o: https://anovademocracia-br.atualizarondonia.com/709071-ley-omnibus-las-fotos-de-la-represion-en-las-afueras-del-con  Ver também, Cf. “Protestas en Argentina ante el debate en el Congreso de la polémica ‘Ley Ómnibus’. IN: 24, 01 de fevereiro de 2024. Link de o: https://www.24.com/es/am%C3%A9rica-latina/20240201-protestas-en-argentina-mientras-el-congreso-debate-por-la-pol%C3%A9mica-ley-%C3%B3mnibus  ↩︎
  39.  Além da força e da pertinência da Carta aberta de um escritor a Junta Militar de Rodolfo Walsh, escrita entre o janeiro e o março de 1977, é imprescindível destacar que Walsh não se bastou em denunciar, desde a perspectiva dos reclamos dos direitos humanos, as atrocidades cometidas pelo regime militar, mas – fundamentalmente -, procurou articular a desmesurada violência exercida pelas forças repressoras da ditadura genocida (campo tático) aos intentos estratégicos de reformulação profunda da política econômica encetada por José Alfredo Martínez de Hoz em benefício das grandes corporações monopólicas internacionais e seus sócios locais. Vejamos este trecho da Carta de Walsh: “Na política econômica desse governo se deve buscar não somente a explicação de seus crimes, mas uma atrocidade maior que castiga a milhões de seres humanos com a miséria planificada. Congelando salários a cassetetes enquanto os preços sobem nas pontas das baionetas, abolindo toda forma de protesto coletivo, proibindo assembleias e comissões internas, alargando os horários, elevando a desocupação ao recorde de 9% e prometendo aumenta-la com 300 mil novas demissões, se tem retrocedido às relações de produção dos começos da era industrial e quando os trabalhadores se pam a protestar lhes tem qualificado de subversivos, sequestrando grupos inteiros de representantes que, em alguns casos apareceram mortos, e em outros casos, simplesmente não apareceram. (…) Ditada pelo Fundo Monetário Internacional segundo um receituário que se aplica, indistintamente, ao Zaire e ao Chile, ao Uruguai e a Indonésia, a política econômica dessa Junta [Militar] somente reconhece como beneficiários a velha oligarquia pecuária, a nova oligarquia especuladora e a um grupo seleto de monopólios internacionais encabeçados pela ITT, pela Esso, pelas automotoras, pela U.S. Steel, pela Siemens, às que estão ligados pessoalmente o ministro Martínez de Hoz e todos os membros de seu gabinete”. IN: WALSH, R. Operación masacre. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2001 (p.232-234). Cf. também a nossa tese apresentada para Professor Titular de Fundamentos Filosóficos da Comunicação no Instituto de Arte e Comunicação Social/Universidade Federal Fluminense (2017), e publicada como livro: Rodolfo Walsh, a palavra definitiva – escritura e militância. Florianópolis: Editora Insular, 2018. ↩︎
  40.  Depoimento de Erika Lederer, por aúdio de WhatsApp, a André Queiroz, em 26 de abril de 2025. ↩︎

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