1973: há 50 anos, o Brasil viveu um dos picos de sua produção musical 151p4t

Alguns dos álbuns levantados pelo livro "1973: O ano que reinventou a MPB". Foto: Reprodução

1973: há 50 anos, o Brasil viveu um dos picos de sua produção musical 151p4t

2023 marca os 50 anos de um período marcante para a cultura musical do Brasil, uma espécie de microcosmo do que se gestava na música brasileira de então: 1973 é uma data celebrada pela quantidade de projetos musicais de relevância continuada, uma mão cheia de “essenciais”; tanto pela consolidação mais bem acabada de projetos estéticos como por novas iniciativas e estreia de autores importantes. 2c376y

A título de uma breve demonstração, temos o “Milagre dos Peixes“, de Milton Nascimento, “Chico Canta” (originalmente “Chico Canta Calabar”), de Chico Buarque e Ruy Guerra, “Missa Breve” de Edu Lobo, “Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho de Camafeu com Sérgio Ricardo”,Drama 3º Ato“, de Maria Bethânia, “Matita Perê“, de Tom Jobim, “Nervos de aço“, de Paulinho da Viola, “Novos Baianos F.C.“, dos Novos Baianos, o homônimo do “João Gilberto“; os álbuns de samba homônimos “Clara Nunes“, “Elton Medeiros” e “Nelson Cavaquinho“, “Opinião (…) e outros sucessos de Zé Ketti“, “Canto por um novo dia“, de Beth Carvalho, “Origens“, de Martinho da Vila e “Dor de cotovelo“, de Lupicínio Rodrigues; os quatro volumes de “Música Popular do Nordeste” da Marcos Pereira Discos, com participação de Quinteto Violado e Banda de Pífanos de Caruaru… E, dando as caras ao mundo em estreias marcantes, os homônimos “Luiz Gonzaga Jr.”, “Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta“, “João Bosco“; “Pérola Negra” de Luiz Melodia, “A volta de Secos & Molhados“, de Secos e Molhados “… Das Barrancas do Rio Gavião“, de Elomar, “Meu corpo, minha embalagem, tudo gasto na viagem“, do Pessoal do Ceará (Ednardo, Rodger Rogério e Tétty), “Eu quero é botar meu bloco na rua“, de Sérgio Sampaio, “Krig-ha, bandolo!” de Raul Seixas e “Manera fru fru, manera” de Fagner.

Ainda que o fenômeno 1973 seja celebrado numa espécie de “panorama geral”, em espírito consumista de catálogo, está amparado em fatos, em uma qualidade verdadeira, fazendo-se importante compreendê-los em seu processo histórico. O compêndio “1973: O ano que reinventou a MPB” (2014), organizado por Célio Albuquerque, traz em seus ensaios vários indicadores desse processo no qual destaca o período de 1970-1974.

Notadamente, a ampliação da indústria fonográfica durante e após a chamada “Era dos Festivais”, com desenvolvimento técnico e produtivo e ampliação do consumo; o ime político pós-AI-5, gerando ora fervor, ora comiseração, mas sempre refletindo a necessidade de retomar uma comunicação perdida; a consolidação de grupos de artistas e intelectuais em várias “cenas”, sobretudo no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, que serviram de mentoria e alavanca para novas iniciativas; a sistematização mais completa dos prolíficos debates iniciados no fim dos anos 50 acerca do caráter e feitio da música nacional e popular, o que propiciou melhores condições tanto para assumi-los e dar prosseguimento quanto para negá-los num estilo “inconformista”.

A convergência destes vários fatores propiciou, no acaso de 1973 (de fato, na extensão da década inteira), naquilo que o compositor Aldir Blanc considerou como a “explosão” de uma “paradeira imposta, não sentida”1. Aquilo que de melhor se produziu nesse período é patrimônio genuíno de nossa cultura; é a produção de artistas e cenas com orientação nacional, integrando-se num cariz solidário e sedento pela autenticidade… Florescendo mediante incontáveis dificuldades, no regime fechado de Médici, carregando como troféu as cicatrizes deixadas pela censura. Uma miniatura de todo esse panorama está em “Milagre dos peixes”, de Milton Nascimento: com a censura de oito das onze faixas que compunham o projeto, o cantor mineiro decidiu gravar a maioria das canções apenas com vocalizes, ando o sentimento das letras através de sua interpretação. Foi um pico de energia, em grande medida absorvido pelo sistema, que se dissipou lentamente a partir da década seguinte.

Milton Nascimento nos anos 70. Foto: Reprodução

Uma das expressões dessa tendência à “explosão” foi o ambicioso show “O Banquete dos Mendigos“, organizado por Jards Macalé e Xico Chaves no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com ajuda do diretor de sua cinemateca, Cosme Alves Netto; que contou com a participação de Paulinho da Viola, Jorge Mautner, Gonzaguinha, Johnny Alf, Raul Seixas, Chico Buarque, MPB-4, Luiz Melodia, Dominguinhos, Milton Nascimento, Toninho Horta e Gal Costa. O show, em tom abertamente provocativo, foi divulgado clandestinamente, através de panfletos com data, hora e local distribuídos por meninos de rua; e foi realizado sob o cerco de tanques ao museu2. Seu registro foi feito clandestinamente pelo baixista do grupo Soma, e só foi distribuído pela primeira vez em 1978, num LP Duplo; e na íntegra em 2015. Segundo Macalé, “não era um festival, era uma reunião de amigos para realizar, no final, um gesto político”3.

Outro desses eventos exemplares do ano foi o festival de quatro dias “Phono 73 (O Canto de um Povo)”, promovido pela Phonogram em São Paulo, que contou com trinta e uma apresentações de artistas novos e consolidados, formando duplas no palco. O festival é lembrado por seu repertório antológico, mas também pelos inúmeros problemas decorrentes da organização logística e da intervenção do governo fascista, ficando famosa a cena onde dois fiscais do regime cortaram o som do microfone de Chico Buarque e Gilberto Gil enquanto estes cantavam “Cálice”. 

Jards Macalé com o LP “O Banquete dos Mendigos”. Foto: Folha.

Ambos os projetos foram, em sua gênese e propósito, extensões do caráter gregário e colaborativo da música brasileira que teve um pico na “Era dos Festivais” e que seguiu se expressando até meados dos anos 80, aqui em ampla celebração da emergência de uma “nova onda”. Desse aspecto de “vitrine” do Phono 73, há também uma tendência ao lassez-faire e ao relativismo cultural, que afundará, nos anos seguintes, grande parte dos debates que desenvolviam-se na época acerca do patrimônio nacional. Vemos os dois aspectos coexistindo no “manifesto” que veio estampado no encarte do vinil com gravações do festival, lançado com grande sucesso no mesmo ano: 

“Gilberto Gil disse um dia: “Há várias formas de fazer Música Brasileira. Eu prefiro todas. Nós acreditamos e continuamos acreditando cada vez mais.”

A torrente criativa na Música Popular Brasileira se processa em vários níveis. Escolha o seu e deixe que cada um escolha o que seu ouvido e sua vida mandar (ou pedir, ou exigir).

Chô Chuá, Cada Macaco no Galho / Chô Chuá, Eu não me canso de falar. Cada um tem a música que precisa. Ou que merece.

Quem pode ter a pretensão (ou a loucura) de dizer o que o povo DEVE ou TEM que ouvir? Na Alemanha, numa época, tentaram. Não deu certo…

A Música Brasileira é hoje, em sua totalidade, uma das mais fortes expressões das angústias, sonhos e emoções coletivas de nosso povo.

A inspiração brasileira: da mais simples moda de viola à mais elaborada harmonia.

Nós aceitamos todas porque negá-las seria negar comunidades inteiras, com suas necessidades e suas formas de expressão.

Estamos abertos à música que se faz no Brasil. E se faz muita música no Brasil. Porque há muita gente no Brasil querendo ouvir música. Gente das mais diversas sensibilidades, das mais distantes classes sociais, dos mais defasados níveis de consciência. E nós queremos que sempre haja uma música enquanto houver alguém disposto a ouvi-la.

A PHONO 73 é a expressão viva de nossa posição e disposição diante da música que se faz hoje no Brasil. Venha de onde vier, seja feita por quem for, de que forma for. Canto aberto. Pra todos que quiserem ouvir. Para um país inteiro.

Canto de um povo.”4

Como celebração desse marco, selecionamos algumas faixas para ilustrar bem a “explosão criativa” e impulso do período retratado.

  1. Comportamento Geral – Gonzaguinha (em “Luís Gonzaga Jr.”)
  2. Vento Bravo – Edu Lobo e Paulo César Pinheiro (em “Missa Breve”)
  3. Sangue Latino – João Ricardo e Paulinho Mendonça (em “Secos e Molhados”)
  4. Quilombo – João Bosco e Aldir Blanc (em “João Bosco”)
  5. O samba da minha terra – Dorival Caymmi (em “Novos Baianos F.C.”)
  6. Calabouço – Sérgio Ricardo (em “Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho de Camafeu com Sérgio Ricardo”)
  7. Milagre dos Peixes – Milton Nascimento e Fernando Brant (em “Milagre dos Peixes”)
  8. Cala a boca, Bárbara – Chico Buarque e Ruy Guerra (em “Chico Canta Calabar”)
  9. Que as crianças cantem livres – Taiguara (em “Fotografias”)
  10. Eu quero é botar meu bloco na rua – Sérgio Sampaio (em “Eu quero é botar meu bloco na rua”)
  11. Réquiem – Francis Hime e Ruy Guerra (em “Francis Hime”)
  12. Juízo Final – Nelson Cavaquinho e Élcio Soares (em “Nelson Cavaquinho”)
  13. O Violeiro – Elomar (em “… Das barrancas do Rio Gavião”)
  14. Roendo as unhas – Paulinho da Viola (em “Nervos de Aço”)
  15. Tristeza pé no chão – Armando Fernandes Mamão (em “Clara Nunes”)
  16. Pérola Negra – Luiz Melodia (em “Pérola Negra”)
  17. Matita Perê – Tom Jobim e Paulo César Pinheiro (em “Matita Perê”

Esse texto expressa a opinião do autor.

Notas:

  1. “Muito desse período de não-criatividade, de silêncio (1969-73) não tem uma causa estética como certos analistas parecem querer colocar a todo momento, em frases que falam do marasmo e da inércia. Cabe aí uma análise mais profunda. Na verdade, não existia marasmo algum. O que havia era a atuação, em níveis quase ináveis, de certos organismos. Era uma ‘paradeira’ imposta, não sentida. As pessoas sempre pintaram quadros, compam, escreveram livros e peças. O que não era possível era a apreciação de seus trabalhos. Mas, a partir de 1973, as coisas acabaram acontecendo – como numa explosão −, apesar da persistência da censura”. Retirado do livro “1973: O ano que reinventou a MPB”. ↩︎
  2. https://vladimirherzog.org/alvo-da-censura-espetaculo-banquete-dos-mendigos-e-lancado-pela-primeira-vez-na-integra/ ↩︎
  3. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/12/banquete-dos-mendigos-piada-de-macale-contra-a-ditadura-faz-50-anos.shtml ↩︎
  4. A versão completa do “manifesto” foi retirada do link: http://mappesonore.altervista.org/dettagli/Testi/articoli_vari/phono_73_manifesto.html ↩︎
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